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quinta-feira, setembro 21, 2006

O PAPA TEM RAZÃO?

Queridos Amigos deste Boletim FIRGS

A seguir, venho comentar o artigo de Marx Golgher, sobre a fala do papa, no Boletim de 21/09/2006, que me causou mal estar.


Tenho a maior admiração pela comunidade judaica de Porto Alegre, responsável por tanta cultura, vida e trocas. O Israelita é parte da nossa vida, como comunidade, e somos gratos a todos vocês, desde sempre. Eu mesmo, provavelmente, tenho sangue judaico, português. Também não tenho nenhuma ligação com a comunidade árabe, seja em termos de religião, política ou mesmo cultura, a não ser alguns quibes e tabules na hora do almoço.
Aliás, como a maioria das culturas do Brasil, podemos ser diferentes e próximos; ao valorizarmos nossos ancestrais e nossas fontes culturais, e a dos outros, todos nós vivemos um mesmo espírito, e não faz muito sentido nos "marcarmos" com uma única nomenclatura, como se houvesse grupos fechados: O Bom Fim é judeu, e é meu também.

De qualquer modo, não há um único tipo "judeu", assim como não há um único tipo "cristão", "árabe", "chinês". No mundo cosmopolita que nos cerca, vivemos cercados de diversidade, o que aumenta a riqueza e a beleza da vida.

Eu não poderia admitir que ninguém falasse mal da cultura judaica, pois, se não fosse por dignidade, a Bíblia é parte essencial da cultura cristã greco-latina européia, que tanto nos influenciou. Como cristão, eu devo aos judeus meu Livro e meu Mestre, e, claro, a bela Espanha, e devo ao Islã a teologia, a cultura grega, o gótico, a Espanha.

Devemos, nós cristãos, ao islamismo, uma “herança esquecida”, segundo o medievalista Alan de Libera, pois em Bagdá, na Idade Média, “traduzem-se e explicam-se textos” (da literatura hebraica, da grega, siríaca, persa, hindu, latina), e há “um público que aprecia instruir-se”, “os latinos se esforçam para manter sua cultura, enquanto, no mesmo momento, o mundo muçulmano conserva, produz e desenvolve a sua cultura e a dos outros”. (de Libera, Pensar na Idade Média, p. 100)

Se a etnia de origem judaica trouxe ao Ocidente a vasta contribuição de médicos, intelectuais, artistas e reformadores, assim também os povos orientados pela ética de Maomé, que reformularam e ampliaram as mesmas áreas da medicina, filosofia, artes e religiosidade. Jesus, um judeu, como nos mostraram os testes baseados em análises genéticas, teria a barba, tez escura, a face de um oriental, de um homem do Oriente Médio, de um islâmico. O judaísmo e seus filhos – Salomão, Marx, Rosa Luxemburgo, Freud, etc.- possibilitaram que nossa cultura pensasse na justiça, desejasse a verdade, valorizasse o homem e criasse opções de sociedade onde o dia-a-dia fosse satisfatório.

Da mesmo forma, o Islã, essa cultura que envolve milhares de modos de ser, é parte importante da cultura oriental e tem uma longuíssima história - que começa em 600- de escolas de direito, mística, filosofia, teologia, tendo o próprio Renascimento começado em Bagdá.
Foi graças ao Islã que surgiu a escolástica medieval; eles "preservaram" um local de tolerância para judeus na Espanha por 700 anos, foram os cristãos que (n)os expulsaram. O livro "O Islã", de Karen Armstrong mostra isso.

Karen Armstrong diz que “Jihad”, no Alcorão, significa "esforço interno para corrigir os maus hábitos". Assim como as Cruzadas - túmulo dos europeus, que marcharam em direção à fome e ao saque - os exageros de pessoas de origem árabe tem motivos políticos circunstanciais. Muito que se vê hoje, segundo a autora, é uma reação a "modernidade" que veio em cinqüenta anos no Oriente Médio e parecia disposta a destruir tudo, hábitos, moral e fé. De Cristo e sua ética do amor, partiram tanto Frederico II, criador da Inquisição, quanto Madre Tereza. Segundo a autora, a palavra islam está etimologicamente relacionada a palavra salam (paz) e significava a coesão e concórdia. (ARMSTRONG, p. 66) A autora comenta que “o anti-semitismo é um vício cristão”. Diz ainda:

“...alguns muçulmanos agora citam passagens do Corão que se referem a luta de Maomé com as três tribos judaicas ... retirando esses versos do contexto, eles distorcem tanto a mensagem do Corão quanto a atitude do Profeta, que, ele próprio, não tinha ódio ao judaísmo”. (p. 63)

Ninguém pode ver o terrorismo sem pensar em quão frágil é a vida humana e quão terríveis as idéias que enrijecem a vida. Pessoas e povos que se consideram ofendidos e invadidos reagem de forma violenta, há milênios, pela história da humanidade. Ainda que eu nada tenha de árabe ou a favor especificamente do Islã, não poderia querer negar o impacto das citações papais, pois se dissessem que Cristo é responsável pelas Cruzadas por que disse “eu vim trazer a espada”, eu, como cristão, me sentira ofendido.

A citação do Papa, vinda de um homem de sua importância e posição, foi tão estranha que causou uma rápida reação, tendo ele próprio se escusado, de modo informal.

Nenhum homem público está livre de um mal entendido, e cada um entende como quer até uma frase escrita, mas nós ficamos mais serenos se soubermos que o Papa não prega a guerra santa. Os judeus do mundo todo nos legaram sua luta pela tolerância e respeito à diversidade, entre outras coisas, por um princípio ético de igualdade no seio do Iluminismo. Não podemos simplificar as coisas, mesmo que “as coisas” nos atinjam de cima. O medo nos faz agir, mas o medo não é bom juiz.

O Papa, por outro lado, não é a Igreja (ainda que, por tradição, respeitemos seu simbolismo) assim como não o é Santo Agostinho, nem Inocêncio III ou Gregório VII, criadores da monarquia papal, uma inovação "romana" do século XII. A Igreja é o amor à comunidade, e é a comunidade. O Papa é o "supremo servo". Assim também muitos israelenses, mesmo vivendo sob o medo e a insegurança, protestam contra a ação de alguns governantes. Os governantes devem ser sempre "nossos servos", não senhores.

Não teria sentido nenhum começarmos agora uma guerrinha por quem estava certo em 1200; nossa cultura evolui e, se a ética da Bíblia, de Maomé, de Jesus deram linhas gerais de ação ética, qualquer tentativa de reviver frases de outros contextos e aplicá-los hoje sem crítica seria mero fundamentalismo.
Em um momento onde a concentração de dinheiro possibilitou que 5 ou 6 empresas no mundo todo nos abasteçam de cultura, informação e debate, e nossos governos não podem dar á democracia aquela parcela de distribuição de renda e de pressão aos políticos e empresas que mantém a democracia, a simplificação pode ser trágica. Caminharemos para sociedades fechadas, feitas de condomínios fechados, de carros fechados, de crianças fechadas? Os produtos são todos iguais, as pessoas são todas iguais, as idéias são todas iguais: vivemos a simplificação global, com ela, a pobreza da vida.

Assim como a nossa Bíblia Sagrada, cada povo viveu momentos de paz e guerra e cabe a nós compreendermos o todo da ética como um chamado à compreensão e ao amor.
O Alcorão pode afirmar: "Não discuta com os seguidores de uma revelação mais antiga (cristãos e judeus) senão da maneira mais amável possível... pois o nosso Deus e o vosso são um único." (p. 49).

Dialogar é difícil, às vezes exasperante. Não podemos aceitar tudo, e não podemos entender a verdade do outro de modo completo. O medo nos domina, o medo nos leva a ver menos, mas, vendo menos, a realidade se vinga, as conseqüências são mais violência e eterno medo. A Revolução Verde, por exemplo, foi boa para aumentar a quantidade de produtos mais baratos, mas hoje convivemos com os danos ecológicos, muitos deles irremediáveis.

Em um plano muito mais trágico e vergonhoso, foi a simplificação que levou os judeus ao forno, e, com eles, nós todos. O século XX nunca se recuperou desse golpe, e a humanidade, quem sabe, nunca se recuperará. Percebemos, então, que há “vida”, algo que transcende culturalismos, ciências, formas, aparências. Há vida.

O Holocausto marca o horrível e forçado “fim” da realidade, marca o momento em que idéias abstratas, preconceitos, simplificação e condescendência, e, em primeiro lugar, a ambição movida por desejos irrealistas, consomem e própria chama da vida, feita de tons e semi-tons.

(Toda a ação tem alguma "generalização" ou simplificação, mas só com elas, o caos toma conta; no mundo de hoje, em que queremos reconhecimento, trabalho, lucro, poderíamos ficar todos em nosso cantinho, mas isso levará à guerra, que é a falta de conhecimento, de opinião pública, de controle mútuo).

É preciso escutar, sempre: a vida é maior que nossos hábitos. Maior até do que nossa compreensão. Devemos, todos os sábios o disseram, antes de tudo, cuidar da vida; a vida, tão frágil, e tão diversa, mesmo que não a compreendamos, mesmo que não seja nossa. Cuidar da vida resume todas as leis. E, se não bastasse tudo, o bem é, no fundo, nosso desejo de continuar vivendo, a força que nos impede de cair no mero caos de vontades violentas, e, para isso, os outros precisam viver.

Como diria Salomão: “A resposta branda aquieta a ira; e a palavra dura, incita ao furor”.

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