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quinta-feira, janeiro 01, 2009


A mostra Jacques Tati, do HSBC, fez uma história do século com leveza. No século de Monsieur H. e Monsieur S., Monsieur Hulot aparece não como uma resposta, ou um antagonista (há contraponto para o indizível?), mas como uma flor do campo que insiste em ser apenas isso.

O primeiro filme, de 53 conta sobre um mundo absolutamente em paz ("frescor infantil e terrível, suspenso sem rumo num vazio" depois das guerras, como, segundo Hannah Arendt, em "Homens em tempos sombrios", bem definou Sartre). As pessoas saem da cidade em busca daquilo que o mar oferece. Encontram Monsieur Hulot e uma porta aberta ao vento, uma vela dentro de uma dispensa com fogos de artifício às 4 da manhã e um LP que explode em jazz do nada, alvoroçando o descanso. Já o assisti duas vezes e não me canso. É o prazer incrível de não ser perfeito e rir de si mesmo.

O segundo filme, "Meu tio", de 1968, já tem outra cara. É uma crítica bem franca ao "modernismo", aos pais que não têm tempo para os filhos, às mulheres fúteis que vivem para a casa e as amigas, aos prazeres da riqueza que nada são sem alguém para compartilhar. Em tudo isso é realmente o clássico despretencioso sobre o despertar do "sonho" iluminista de que a tecnologia ia trazer a felicidade. Afinal, o homem não ia mesmo conquistar a lua? Pierre Cardin não criava roupas de astronauta e dizia: "as roupas que eu prefiro são aquelas que eu crio para (...) a vida de amanhã?"

Essa brincadeira de herói do deserto sideral fica ainda mais visível em "Traffic", de 1971. Depois de assistir uma noite toda a chegada, os homens caminham na garagem em câmera lenta. Agora a sociedade do consumo venceu (a máquina da liberdade ainda brilha, neste mundo novo, como um cigarro nas mãos dos atores dos anos 50), e o racionalismo cômico que já aparecia em "Meu tio" aparece aqui mais forte, mais enredo, mais o fluir do filme e menos o palhaço Tati.
Todos estão orgulhosos de seus carros, mas não podem andar, congestionados. (Profético! Devia ser passado no ensino fundamental em São Paulo...) O riso é mais cerebral, mais sarcástico, mas cheio de boas gags de circo como os hippies que substituem um cachorro por seu casaco "ovelha", levando a dona (histérica mulher-moderna profisional- american way chata) à loucura. Monsieur Hulot agora é um designer (!), vejam só, mas capaz de pensar num pára-choque (ou será que a nova regra já vale, parachoque) de assar bife...
A burocracia é ridicularizada, e a cena de Hulot pendurado de cabeça para baixo numa árvore, depois de pôr abaixo uma trepadeira enorme que cobria a fachada de uma casa, tentando não perturbar a conquista de um hippie, é a "prova" tatiana de que, no mundo planejado, o acaso sempre alcança...

"Parade", 1974, é o canto do cisne - mas um canto cheio de amor- por um mundo onde a inovação era possível, longe da "média" do "cidadão comum" da massa.
(Parêntese: em um bar ouço a um trecho de Mulheres Apaixonadas, de Manoel Carlos. Os diálogos, que tentam naturalismo "sabe-o-que-eu-comprei-na-feira?", mostram uma diretora amadíssima pelos seus alunos, brincalhões e simpáticos, que aplaudem no final de seu discurso, incentivando o estudo. Sempre o medo dos conflitos reais, que salvaram as séries americanas como House. Reflexo do isolamento dos artistas, no mundo dividido?)

Aquilo que o cinema francês traz de mais importante, tão bem representado por Catherine Deneuve -uma ousada constante - e o "Conto de Natal" de Arnaud Desplechin, o confronto com nosso mal, as incompreensibilidades da vida, a rebeldia (sim, contra o "mercado" imperialista, no fundo, que hoje é um o mercado de idéias simplistas, a mediocridade, a arte-shampoo, ou a arte "arte" só para amigos artistas "alternativos").

Circo-filme (quem pode imaginar maior diferença com o Circus de Britney, essa menina triste de cordinhas que usa qualquer decalque do baú-do-mundo - os simulacros - que algum empresário cria para uma cara nova para o mesmo perfume?)
Tati faz uma ousada brincadeira com o que há de mais simples: a união de diversas pessoas fazendo coisas inúteis e que exigem talento, a lembrança do artesanato, da tradição do medieval, dos artistas bufões, da arte enquanto liberdade. Pode dar errado, e dá, em alguns momentos: há piadas que não entendemos, como na orquestra brigando pelas roupas, isso porque Tati é rápido, "tudo é perigoso..." Mas o prazer de uma obra de arte com erros é sempre infinitamente maior do que uma obra de não-arte perfeita.
Sinto hoje, nos artistas, um medo enorme de errar, uma imensa necessidade de afirmar-se e é isso que mata qualquer tentativa de criar uma linguagem de algum impacto, que só pode nascer da retirada completa da máscara (assustadora) e da identificação pela vontade de oferecer, anti-individualista de início.
E se Hulot é algo, esse algo é generosidade. Tati lembra-nos que a Commedia del’Arte - que literalmente significa a comédia dos artistas- ainda é possível. Disse Marcel Marceau:
"Bip não vive de lembranças. Seus combates são do mundo de hoje. Ele é como Dom Quixote, lutando contra os moinhos de vento da existência".

(MARCEAU, encarte do programa de sua turnê pelo Brasil, 1997
http://www.cialuislouis.com.br/tf-marceau.htm)

O filme é genial por transformar mágicos, mímicos, acrobatas, cantores, orquestras, hippies, crianças, cavalos, imagens, conceitos, fluxos de circo em filme, de 85 min. As crianças pequenas, no final, brincando com tinta -além de uma porta dizendo "o circo não acabará nunca"... - é uma lembrança do que é ser artista. Sempre haverá um coração aberto para ouvir nossa canção.
Fazer arte ainda pode ser divertido.