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sexta-feira, março 25, 2011

Dramático que funciona, pós-dramático desfuncional



O cenário é uma beleza, aço escovado, luz do espelho, e dá muita esperança. Entra um Hamlet esfarrapado. Ok, pode ser bom. Mas logo surgem personagens fazendo Glee. Depois uma adolescente em conflito, um ator fracassado... e, claro, uma mulher de meia idade louca-desesperada-morrendo. De repente, um seu vozeirão parece que vai salvar tudo: são três ou quatro números sensacionais, incluindo Piaf, mas que podiam ser um show independente sensacional, Lady Gogó (é Rosana Stavis). Choro e lágrimas, e umas duas cenas de comédia escrachada que seriam um sucesso se o início não fosse drama puro (o travesti arranca risos sinceros). Algumas frases são involuntariamente cômicas: “Sou branca como uma nuvem”, “Eu te amo mais do que você me ama”, e por aí vai. A questão é (repetitiva, mas temos de repetir): somos tão dramáticos? Ainda falamos por sofrimentos tão profundos, ainda conseguimos expressar nossa dor com essa expressividade toda? Lembro que sempre em Malhação tem uns gritos para dar “vida” ao naturalismo boboca. A frase de Nietzsche aqui tem força total: falamos o que está morto em nossos corações. Não fazemos mais drama desde que Tchecov mostrou a banalidade do nosso mal. O que quer que se pense do conceito de pós-dramático, ele retrata o fato de filtrarmos em nossa linguagem cada coisa objetiva, de não termos um eu tão fixo, de sermos contraditórios, de nossa realidade ser tão instável que nos obriga a saltar de um eu ao outro continuamente. Sabemos que o Homem, um ser abstrato e universal, era um reflexo daquele Deus Imutável (e zangado), que até sustentava uma ciência “verdadeira” e um determinismo “já-que-é-assim-tem-de-ser-assim”. Tem uma bomba no caminho. Pelo menos em Pinter sentimos a frieza que é nosso viver macabro e banal, sem religião, sem Estado de Bem-Estar, sem utopia no horizonte. Mas mesmo assim a peça tenta ser “pós-dramática” no sentido de intercalar situações, sonhoXrealidade, etc.


Quero comparar então com Pororoca, que podia ser levada pelas águas do estereótipo: o texto é mais “dramático”, o tema é o pitoresco, há “polêmicas” como prostituição, homossexualismo etc. Só que o naturalismo aqui é muito natural e, além de assumir a ilusão mostrando uma linearidade franca, “irreal”, ou com uma evocação das lendas, por exemplo, logo ganha o público pelo humor simples (o público dá gargalhadas), que é intercalado com cenas do mais puro trágico cotidiano, sem perda para qualquer um deles. O diálogo sempre enriquece os personagens e a ação leva ao seu final previsível, mas tão bem encaminhado que tudo é frescor (ou seja, sempre é o como, porque já sabemos o enredo de Romeu e Julieta). E, no fim, ficamos sim com vontade de ver novamente (talvez por isso os 500 lugares estivessem lotados). Não nos sentimos atormentados por nenhum tratamento “folclórico” do “tipo” nortista. Eu já conhecia um pouco o autor, mas é delicioso ver que o texto ganha vida própria, também pela direção precisa e atores vivos. (Eu encurtaria apenas uma cena ou outra, o que, reduzindo o tempo total, ajudaria a amplificar o impacto. E também seria leal ver mais gente negra e parda - só um! - numa peça sobre o Maranhão, mas não se pode ter tuudo). E como comentou o ator que estava comigo, mesmo não compreendendo muitas palavras típicas da região, nos identificamos pois vemos o que somos e vemos o que suspeitávamos (por exemplo, uma menina vendida pela avó).


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