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sexta-feira, fevereiro 24, 2012

Anormais

Quando L. era pequena, sua mãe a deixara na entrada da sapataria e entrara.
Um homem a levou rua à fora antes que sua mãe percebesse.
A menina foi encontrada dois dias depois numa praça, desorientada, sem calcinha.
Afirmaram que houve "repressão de memória", ela não lembrava de nada.
Os exames foram inconclusivos se houve estupro.

Ela era uma adolescente silenciosa e reservada. Tinha alguns pesadelos. Apesar disso, tinha amigos, estudava, gostava de dançar.
Uma vez, inesperadamente, saiu gritando da sala de aula. Os pais decidiram procurar um médico.

Estavam testando um novo tratamento. Uma enzina era inibida e outras drogas atingiam campos específicos do cérebro. Trata-se de atuar no hipocampo.
Os pesadelos cessaram. Ela começou a namorar. Parecia mais alegre, comprava mais,
estava mais vaidosa.

Passou a se interessar por filmes trash de terror e a colecionar animais empalhados. Formou-se em Direito.
Aos poucos, adquiriu uma estranha e assustadora autoconfiança, uma esfuziante determinação, uma euforia de sólidos raciocínios e um olhar frio e implacável, que lhe fizeram brilhar como uma promessa, uma liderança.

Cobriu as paredes do quarto com casos de crimes violentos. Lia antigos psiquiatras e legisladores interessados em anomalias do espírito e do corpo.

“Quando o governo tentou, sabiamente, capitular frente à Prússia, no ano de 1871, e a Comuna de Paris explodiu, pudemos estudar empiricamente o quanto as tendências impulsivas fomentam a desordem. R., mesmo inteligente, era um indivíduo inadaptado. Tentou entrar sem sucesso na Politécnica, depois cursar Medicina, caindo em seguida em uma vida vã, regada pelo mais execrável ateísmo, materialismo, socialismo e cinismo revolucionário. Complôs, sociedades secretas, orgias, tudo se misturava nesse espírito inflamado. Um olhar doentio, fisionomia arrogante, narinas que exalavam sensualidade, tudo nele apontava uma classe biologicamente desviante. Foi executado neste ano.”

Nos grevistas de Turim esse médico encontrou 41% de tipos fisionômicos criminosos. Ela passou a estudar as fisionomias com uma intensidade anormal.
L. transcrevia madrugada adentro nomes, tipos, casos inteiros de monstros morais, masturbadores, homens bestas, hermafroditas, antropófagos, assassinos.
Passou dois dias acordada ao ler sobre um crime dentro de um condomínio fechado. Parecia cansada.

Começou a falar do perigo da esquerda, do efeito da indisciplina na vida urbana, do vandalismo, da corrupção do Estado “sindicalizado”- entre os colegas de pósgraduação, na mesa de jantar, para desconhecidos. Os pais, preocupados levaram-na ao psiquiatra. Ele tentou induzir a enzina a atuar.
Internada há cinco anos, L. não fala, olha a parede ininterruptamente e parece completamente despersonalizada.

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O trabalho Anormais de Afonso Jr. Ferreira de Lima foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição - NãoComercial - SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

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