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domingo, fevereiro 12, 2012

Matéria escura

Coloque seu protetor amiax – gritava sua mãe.
Ele queria desobedecer, mas lembrou de seu amigo, que ficou com queimaduras de segundo grau ao sair no sol sem roupa de proteção. Cada vez menos gente saía à rua. Pensou que, em algum tempo próximo, todos viveriam dentro de suas casas.

As construtoras globais haviam posto abaixo todos os antigos prédios, casas e áreas públicas, desaparecera a multiplicidade de atividades de outrora, restanto filas de altíssimos condomínios fechados que eram continuamente destruídos para se dar espaço a outros ainda maiores, com a possível expulsão dos moradores para zonas periféricas.

A namorada estava radiante, seus cabelos negros e seu sorriso muito branco, sereno.
Fez boa viagem? - e queria beijá-la antes que respondesse.

Para seu aborrecimento, o marido da irmã teria de dormir novamente em seu quarto. Lembrava do cara falando de matéria escura, algo que é 90% de tudo, mas ninguém explica, seria matéria diferenciada, energia intrínseca, transbordamento quântico, campo dinâmico de energia? E se, de fato, a maioria de tudo fosse o desconhecido?

Eles partiriam para a praia no dia seguinte.

Eu adoro ver a água, apesar de ser tão escura. No museu podemos ver como havia seres vivos lá dentro – dizia o editor de hologramas entusiasmado.
Sabe o que eu teria gostado? - de ouvir aquilo que chamavam pássaros ou dinossauros aéreos. Dizem que nas cidades havia aquelas madeiras com verde, que alí também eles faziam saudações ao sol! Por que fui eu viver nos dias de hoje – a moça sorria tristemente.

Para poderes comer salex em barras multi-vitaminadas – Fred-I tentou ser simpático, mas parece ter sido uma péssima ideia.

O homem ficava muito à vontade, com protetor de sexo, caminhando e roendo sua água destilada. Olhos negros, nervosos, profundos. Ele só queria desaparecer dentro de seu holomundo, quantas coisas para fazer – jogar na Bolsa, amantes, corridas, óperas, estava vivendo um amor com uma cortesã na França de Luís Filipe, onde jantava com Flaubert, e participava do movimento ecológico no século XX, contra as usinas nucleares, muito engraçado.

Augush simplesmente saiu pelado do banheiro. Gostava de conversar, o chato. Não tinha podido conhecê-lo muito, mas o fato de invadir seu espaço era suficiente. A irmã há muito havia cansado dele, parecia, e ficava quieta quando a mãe perguntava como ia o casamento. “Não sei, é como se não se conhecessem” - dizia depois para Fred-I. “Ele é um homem sensível” - ela dizia - “tenho certeza de que teria vivido bem em uma época menos exigente que a nossa”.

Na praia, entraram num holograma de mar, brincaram com um jogo infantil de passar por debaixo das pernas um do outro. A namorada não gostava daquilo. Sentiu-se péssimo quando sentiu reações involuntárias, saiu do programa alegando dor de cabeça. Os médicos vinham recomendando “tempos mortos”, ficar alguns minutos por dia com os olhos vendados para desacelerar o cérebro.
Foi com a namorada na casa de um amigo - como combinado, o outro deixou-os sozinhos - e lá fizeram amor.
Sabe, fui convidada para trabalhar no museu.
O quê?
É, viver o dia todo dentro da exposição, guiando os visitantes.
Fred-I estava tonto.
Vai aceitar uma vida sem corpo?
Eu sempre amei a arte. Você sabe, sempre quis descobrir novos mundos. Não aguento mais minha mãe, com essa mania de falar. O que será que ela quer de mim? Eu tentei ficar dentro do meu C, lembra, mas ela ficou histérica, chamou o neurex, achou que eu tinha uma disfunção.
E nosso amor?
Não seja idiota! Podemos gozar sempre que quisermos. Posso beijá-lo, tocar seu corpo, tudo, roboticamente.
Não sei.
Você se acostuma. O mundo não se acostumou? Quero dizer, antes havia madeira, animais, inverno, verão... E daí? A gente muda.

Nessa noite, Augush parecia dormir tão profundamente que praticamente abraçou seu companheiro de cama. Seria de propósito? O filho da puta seria transgozável? Por outro lado, podia-se jurar que dormia como uma criança. Sentiu nojo, depois tristeza. Depois seu pau cresceu. Seria a hora de tomar hormônios zero e acabar com essas forças primitivas?

Sonhou com música. Não a música pós-sonora feita de ruídos, música antiga, com voz e notas. Acordou enjoado, vomitou. Olhou pela janela, o frio da noite, o barulho da água escura. Comeu um tablete de água.
No outro dia, sua irmã havia desaparecido. Um bilhete estranho, “compromissos na cidade”, fez sua mãe comentar baixo: “Eles devem ter tido alguma discussão”.

O homem parecia não perceber nada disso e convidou o cunhado a visitar as rochas, onde se podia ver alguns cadáveres de madeira e ossos de baleias.

Augush não parava de falar sobre uma coleção de arte que havia visto, o artista conseguira representar todos os pontos de vista possíveis de uma tempestade. Como teria sido o tempo em que as tempestades eram pouco violentas e os furações raros? O outro não conseguia conter-se, deveria fazer como muitos, simplesmente pedir que desligassem as sinapses de emoção no cérebro? Viver entre remédios para ansiedade, para dormir, para acordar, para comer... Começou a chorar. O homem ficou perplexo, e o outro encostou sua cabeça nele. Timidamente, Augush abraçou-o.

Fred-I estava constrangido e passou os dois dias seguintes fugindo do cunhado, que parecia olhá-lo com simpática condescendência.
À noite, o homem gemia ao sonhar e gritou. Fred-I o acordou. Suava. Teve pena dele.
Vou viajar. Vou deixar tudo. Não posso mais viver assim – ele disse ao acordar pela manhã.
Para onde vai? - Fred-I sentiu o coração apertar.
É como se minha alma tivesse se perdido por corredores de chumbo, como se eu andasse sobre águas geladas e meu coração... - não podia falar mais.

Fred-I achou seus lábios e sentiu que queria algo que fosse belo. Sentiu um tremor por todo o corpo, como se uma multidão corresse na escuridão de seus nervos, algo novo, um animal com impulsos, olhos assustados, surgiam nas pálpebras relâmpagos - flores, plumas, rendas vinham à sua mente, caía num mar agitado. Era diferente.
Dormiram profundamente.
Quando acordou, o homem havia partido. Um holograma representava uma rosa.


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O trabalho Matéria escura de Afonso Jr. Lima foi licenciado com uma Licença Creative Commons - Atribuição-NãoComercial-SemDerivados 3.0 Não Adaptada.

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