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sexta-feira, julho 27, 2012

Alterações, ironias e descalabros
com um Photoshop disponível :)

Divirtam-se!

Afonso Lima

































segunda-feira, julho 23, 2012


A sedutora

Amigo, temo que sua esposa, a boa Ida, esteja ocupando demais seu tempo e contar-lhe-hei meus avanços, saudoso de nossa antiga correspondência. Quantas vezes ouvimos melodramáticos casos de adultério, de segredos familiares e de desejos reprimidos? Vingança, revolta contra os pais, fantasmas que retornam, toda a onda dos teatros da fatalidade com cenários de papel crepom! Um homem contou-me que seu padrasto abusava dele no banho, ejaculava em sua boca, e que, quando contou à sua mãe, levou uma surra por ser “mentiroso”.

Sempre pensei que, no caso da mulher, a natureza é destino, pois lhe dá a bondade, o encanto e a beleza, as qualidades delicadas e a necessidade de proteção. A luta pela vida não combina com esse anjo doce e delicado, e, quando as misérias se abatem sobre ele, ainda mais na idade em que as flores desabrocham, sua alma de camélia adoece e murcha. Assim, recebi essa garota de dezoito anos em meu consultório, com, entre outros sintomas, tendências suicidas e convulções.

O senhor Philipp, pouco antes do fim do século, levou sua esposa e seus dois filhos para Merano, e nem mesmo o ar límpido e o verde brilhante da velha cidade italiana aplacaram a paixão infernal do seu sangue. Ele envolveu-se com a esposa de seu amigo Hans, uma tal Peppina. Ao saber do ocorrido, o marido traído foi de encontro à filha de Phillipp, Ida, de quatorze anos. A vingança é sedutora quando encarnada em um fruto fresco.

A menina inocente teve um beijo roubado, por pouco não foi violada e fugiu. O pai, ao saber da história, interpelou o marido de sua amante – que negou o fato, claro - e acusou sua filha de mentir. Peppina percebeu que era preciso dar mais consistência à ideia de que a menina mentira por estar na fase em que as paixões começam. Hospedou a garota em sua casa e dormiu no mesmo quarto que ela. Deu-lhe livros eróticos e lhe falou sobre sexo. Depois, reforçou a acusação que lhe haviam feito. Ida começou a ter enxaquecas, tosse compulsiva e afonia. Seus sintomas fizeram com que seu pai a trouxesse a mim, que o tratara de sífilis.

Ela contou um sonho: “A casa pegava fogo, meu pai me acorda, minha mãe quer parar e levar sua caixa de jóias, meu pai diz que não vai nos deixar morrer por causa de jóias e descemos correndo as escadas”. 

Agora, meu amigo, mostro-lhe como estou descobrindo as leis ocultas da mente. Considero histérico aquele a quem a excitação sexual causa repulsa. Serei eu um dia, como o criado Damiens, que ousou ferir o Rei Luis XV, grande sedutor, para trazê-lo à razão, o qual mergulhou na melancolia e extinguiu-se, acusado por romper para sempre a invisível prisão?

Dr. Charcot havia mostrado a importância dos traumas: sustos, ofensas, frustrações. A mente, como um manuscrito repleto de emendas, palavras anuladas e trechos ilegíveis, estende-se como uma catedral que vai além das três dimensões e toca o tempo. A busca de esquecimento, a inibição de uma intenção ou ideia, fazem com que entrem em segundo estado de consciência: sua lembrança retorna em ataques, muito comuns em pessoas de elevadas aspirações estéticas, religiosas (as “monjas convulsivas”) ou adolescentes de “boa educação”. Um desejo violento, em conflito com as aspirações morais.

Eu lhe falei de sua prática masturbatória infantil. Ela sentia um desejo incestuoso pelo pai e desejara sem saber seu sedutor. Nós sabemos que alguns corpos encontrados em Pompéia mostram pessoas gritando ou erguendo as cabeças em gestos de dor. Nem sempre a arqueologia revela o que nos agrada. Deveria ter demonstrado alguma espécie de afeto, tão distante do que cabe à um médico? A jovem em flor havia ido embora.

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segunda-feira, julho 16, 2012

Pesadelo

Aquela Igreja escura e (seria minha imaginação?) úmida me dava arrepios, mas minha irmã teve um surto de fé e quis batizar meu sobrinho seguindo a tradição da família. Por algum motivo eu estava sentada sozinha no banco, olhando aquela imagem de dor que tanto tinha significado em minha infância. Parecia tudo frio, e as velas iluminando rostos distantes me davam arrepios. Incrível como certas crenças ficam fincadas na alma da gente: os protestantes eram rebeldes, Deus é homem, Cristo realmente é o Filho Único e a Bíblia errou ao afirmar “irmãos de Jesus, existem pecadores por default. Eu era simplesmente à favor da liberdade. Estava distante quando ouvi um choro abafado em um bando atrás de mim. Pensei em ignorar, mas a moça parecia desesperada e acabei levantando e oferecendo um lenço. Obrigada, ela disse. Ficamos sentadas lado a lado em silêncio e eu ia levantar-me quando ela falou: - Você acha que existe mesmo pecado? - era uma pergunta retórica, graças a Deus – Eu trabalho numa clínica de abortos. Nós trituramos bebês de três meses em liquidificadores e jogamos no vaso sanitário. Damos fetos de cinco e seis meses para os cães do canil - Eu mesma comecei a tremer involuntariamente. Tentei desviar o olhar – Estou entrando em depressão. Ouvi um barulho vindo da sacristia. Levantei-me um pouco contrangida e fui em direção à minha irmã. Ela saía animada com o padre. Voltei-me. A moça não estava mais no banco. Olhei rapidamente pela Igreja, havia desaparecido. Aquela noite, tive pesadelos.

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segunda-feira, julho 02, 2012

Dois metros de neve
Exercício – aula de Ricardo Marques – Afonso Lima

1 - (Uma mansão vazia. Livros pelo chão, taças de champanhe e garrafas vazias. Um grupo com roupas retrô dança algo coreografado sem música.)

Atuante 1 – Senhoras e senhores. Daremos início à nossa celebração. Mestre Um, por favor.
Mestre Um – Celebramos hoje a morte. Do desejo. Tudo escureceu, a neve soterrou nossos amigos. Somente a contemplação da arte. Aplaca o desejo. Tudo escureceu, as árvores secaram. Desejar é inútil, a neve cobriu tudo, tudo acaba em nada. O mundo lá fora é frio e triste.

Mestre Dois – Vencerá o Super-homem. O melhor. O sol não se levanta. Um bebê está morto no berço. Um homem corre nu em círculos. Lágrimas frias. Desmorona o castelo. Um show de horrores começa. A ética é uma bobagem, para reprimir os melhores. Senhores, vamos homenagear o niilismo. Começa agora o happening: como não fazer nada.

(Todos se sentam no chão e ficam imóveis. Música de Wagner sobe).

2 - (Um grupo de pessoas – homens e mulheres- com terno e gravata sobre a grama de um jardim).

Homem 1 – Cena 1. Eles estão no jardim e desistem.
Mulher 1 – A essência do mundo? O absurdo. Nós somos a coisa-em-si. Mergulhemos.
Mulher 2 – (Cavando o chão com um utensilho de cozinha). Dizer o quê? Para quê?
Mulher 1 - Eu poderia contar a queda de um grande homem, como Lúcifer, um fidalgo honesto, usou a Constituição contra seu Monarca absolutista. Não.
Mulher 2 – Cantemos. Conhecer a verdade da vida, o sofrimento. Um pesadelo. A verdade da tragédia, a abdicação da vontade de viver.
Homem 1 – Quadro branco sobre fundo branco. Vamos esperar por ele. “Sou o império no fim da decadência”. As estrelas pararam, frias, metálicas. A sombra mama nos seios da virgem. Um homem morreu na neve. Um espelho melancólico congela. A vida é um pesadelo. Vocês estão vendo a essência.
(Coro faz gestos de espanto e medo)
Mulher 1 - A loucura como essência. O anseio de não viver. Impulso cego, força obscura, irracional, insconsciente. Cegos, andamos sem guia, com o frio sob nossos pés.
(Coro tira pedaços de grama do jardim).
Homem 1 – Onde enterramos o corpo? Abrace-me.
Mulher 2 – A razão é uma sombra sobre abismos e horrores.
Mulher 1 - Onde enterramos? A razão é um órgão como qualquer outro.
Mulher 2 – Paisagem deserta. Do sofrimeto ao tédio. Só tédio ao sofrimento. Uma coisa é bela quando não nos interessa. “Sou o império no fim da decadência”

3 – (Uma tempestade é vista através de uma grande janela em uma casa antiga. Uma lâmpada à óleo).

Mulher 1 – Ela já morreu?
Mulher 2 – A tempestade acalma. O mundo é impotente para nos dar qualquer satisfação.
Mulher 1 – Será que ela vai demorar para morrer?
Mulher 2 – Odeio a arte que é bela. Arte pelos olhos. Arte é uma posição.
Mulher 1 – Palha, pedras, lama, metal. O aqui e agora. Será possível viver sem significar?
Mulher 2 – Devíamos buscar um médico? Devíamos colocarum pano úmido na sua testa? Devíamos tentar entender?
Mulher 1 – Tudo é inútil. Está morta (Apaga a lâmpada).

Fim

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domingo, julho 01, 2012

D. João


- Vovó, conta de novo a história da família?
- Sim, sim. Sentem aqui. Era uma vez um Rei Magnífico chamado D. João, o Sexto. Ele estava melhorando o país, criando estradas, correios, embelezando as cidades, criando Tribunais. Mas havia gente ambiciosa e malvada querendo acabar com o Bom Rei. Em Caracas, Buenos Aires, em toda a América, todos queriam agora governar. Um bandido caudilho chamado Artigas, na Banda Oriental, acabou libertando os escravos. Louco! O Bom Rei do Brasil precisava de terras para plantar café. Havia ainda muitos índios na terra. D. João mandou que se fizesse uma guerra para limpar o país dessa gente selvagem. A avó da sua avó era uma jovem índia filha do cacique. Ela foi presa e trazida para a fazenda do avô do seu avô. O maior traficante de escravos havia dado uma quinta ao rei e ganhara um cargo importante. O negro dava muito dinheiro. Muitos escravos compravam escravos - nos dias de folga, trabalhavam para si. O avô do seu avô conseguiu um cargo também por intermédio desse homem. Cada dia aumentava mais o número de negros. Mas sempre há os dissolutos e desordeiros. O rei de Espanha foi preso pelo demônio de Napoleão e se criou uma Assembleia para os representantes da América Espanhola irem - a plebe rude no poder. Em Pernambuco, que vendia algodão à Inglaterra e aos Estados Unidos, surgiu uma rebelião contra a corte do Rio de Janeiro. Os malvados fizeram Assembleia para aprovar leis, fizeram governo deles por três meses, gente ingrata. Eles estavam perto de Portugal, mas agora estavam longe do Rio. Os mineiros uma vez haviam planejado uma República Mineira, por causa dos revoltosos norte-americanos; os bahianos haviam falado como os radicais franceses, que cortaram a cabeça do rei. Agora Pernambuco estava sendo atrevido, rebelde, muito mais radical. O avô do seu avô lutou contra eles comandando as tropas da Bahia. Todos parecem agora ambiciosos, ociosos e devassos. A Era de Ouro, na qual reinava a paz e os homens eram trabalhadores e disciplinados, terminou. Por fim o Bom Rei D. João tem de voltar para Portugal e se submeter aos rebeldes de lá: as Cortes queriam controlar o Monarca. Uma Constituição! São contra a lei natural, dizem que todos são iguais! Nossa família começa a lutar contra a abolição dos negros, que é contra a lei e a propriedade. Cabe a vocês defender a liberdade. 

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