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domingo, janeiro 13, 2013


Cidade Baixa

O plano era derrubar tudo e criar um novo bairro, chamado Cidade Alta. As casas antigas, o caminhar pelas ruas verdes e a vida boêmia seriam substituídas por “progresso”. (Érico Veríssimo, em “O lírio do campo”, mostrou como os espigões podiam ser fatais...)

Ele saía de um jantar romântico. 25 anos, cabelo castanho escuro, 1,75, ativo liberal. Estavam felizes e levemente alcoolizados. A Rua da Praia era toda dourado com suas árvores altas. Um carro veio em alta velocidade. Beckett é sempre igual: escuro, cara branca, será que em todo lugar é assim, ele disse dois minutos antes, Eu gosto.

Foram quatro meses dentro de casa. (Morte: Se n é a catástrofe final, n+1 não pode ser a catástrofe final; se n+1 não é a catástrofe final, (n+1)+1 não é a  catástrofe final. São uns instantes, aqueles momentos de branco em que você segura o pinto e espera o xixi e pode pensar: está tudo perdido, acabe logo com isso. Se o amor é filho de deuses, no mínimo deveria ser um semi-deus. “O fim está no começo e no entanto continua-se”.) Seus amigos (Vera – loira, livro preferido: Paris é uma festa, Sagarana, filme: Morangos silvestres, viciada em videogame, pós-roqueira, peitos grandes, falante compulsiva, poeta, formada em Letras, manicure; Cesar – advogado, grisalho, ex-amante, violino, jazz, O Gordo e o Magro e O capital, vizinho, você precisa de um emprego de verdade, é inteligente e bom) estavam preocupados. Um passeio no shopping? Um desconfiava do outro, era necessário.

Quando vai cair a última casa, caem os panos, um fim para nenhum conflito, como será viver nessa prisão, Cidade Alta, preciso morrer antes.

Foi assim que se conheceram: estavam girando o gôndola de livros de bolso. Seu celular tocou.  Não tinha forças. Uma das coisas que adorava fazer com ele era tomar chá com “biscoitos Natal” - caminhar à beira do Lago, brigar um pouco e fazer amor no frio. Tenho que comprar pão e uma cueca nova. Lembrou de Melissa, ficaram juntos uma semana, por que lembrei dela agora, ela usava meias brancas na cama. Abaixaram os olhos, como quando as coisas são grandes. Silêncio, outro olhar, vou sair, ele falou alguma coisa, você também gosta de Thomas Mann?, telefone, bebida, foi bom pra você. Ok. Tudo vibra, tio Heráclito, ou, como disse Cesar, parece haver um movimento intrínseco aos níveis mais elementares da matéria, mesmo no zero absoluto há energia. Tudo que é duro desmancha no ar.

(Pensava sempre num jogo impossível: as regras mudam com o tempo: no início do jogo, os peões comem as peças em L, os nobres ficam imóveis dependendo de seu vizinho ou comem uma casa para frente; depois, isso se inverte, quando resta apenas a metade dos peões; no fim, os peões podem escolher qual seus “modos” e o rei ataca em todas as direções ou sai do tabuleiro).

Ele voltava à ativa. Seu celular tocou. Um cliente no outro lado da cidade. No taxi, observava os casais de namorados, as casas baixas tornavam a vida mais humana? Não há mais natureza, lá fora é só poeira e a destruição completa, só existe sono, despertar, noite e manhã, ele disse. No futuro, seriam implantados chips para monitorar nosso batimento cardíaco? Em centrais de controle? E quanto aos miseráveis? Receberíamos mensagens quanto ao nosso desempenho profissional semanal, nosso progresso rumo ao “sucesso”, sobre nossa performance sexual média, gráficos sobre as melhorias semanais do governo e novos empreendimentos imperdíveis? Adeus Cidade Baixa. Quantas histórias ficam grudadas em uma parede? Como seria quando cada prédio de 15 apartamentos se tornasse uma torre com cem? Os vereadores falavam em “requalificação”, “atrair público novo”. As leis existem, e daí? Os escravos viveram ali. Nesta casa, Getúlio Vargas começou a planejar secretamente a Revolução de Trinta, lembra. Tudo tem que melhorar nesse mundo - dizia um vereador.

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