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terça-feira, outubro 15, 2013

Sobre o inferno 

Eu, Leonardo Flynn. Percebo que estou chegando na idade em que Rimbaud faleceu. Meu caro menino, meu amado, belo, depravado menino. O que seria de nós sem você? Você nos mostrou que para descrever a realidade, precisávamos conhecer e descrever a nós mesmos. 

Mas também essa fome de novos mundos, essa corrida pela vida, que eu, sr. Henry, reconheço nos bons autores. Essa poesia-prática que devora a Índia, a Arábia e a África, a suspeita de que há outra forma de ver. Vocês destruíram um império com suas frases de fogo, e ainda queremos esses mesmos deuses.

Eu te descobri tardiamente, os livros em minha casa não eram de literatura, mas a feira do livro de minha cidade era movimentada e rica e toda a cidade amava os livros. O som do teu nome magnético, assim como os de Shakespeare, Proust e Joyce, pegar um pouquinho de pó dourado daquelas auras. 

Eu, sra. Parker, penso que, de certa forma, eu também fui um jovem precoce para minha época (mas talvez não hoje, com os bebês e suas telas-de-toque). Aos 11 anos escrevia histórias em quadrinhos, minha primeira peça foi aos 15. Digo isso porque sinto que nós sempre subestimamos e, portanto, subjugamos as crianças e os pré-adolescentes. (Mas isso também pode ser apenas esquecendo delas ou dando tudo que querem). Já nesse tempo, eu pensava que a geração romântica e o jovem gênio de 17 anos eram meus aliados secretos. 

Com 15 anos, você estava em círculos boêmios de criadores. Sim, os artistas conviviam, tomavam café juntos e depois liam jornais e cantavam e falavam do mundo. E se amavam. Pobres, talvez miseráveis, mas em bando. Isso foi negado à minha geração (yuppie). Os "intelectuais" estavam muito distantes e os boêmios eram parte da burguesia. Um mundo de solitários, trancados em suas casas, com medo e aparelhos eletrônicos, um mundo sem ideais. É de mau gosto querer mudar. Temos tanto medo de sermos excluídos que servimos às hierarquias agradecidos. O inferno agora é ignorância bem informada. Talvez seja o espírito gaúcho, a ética do trabalho, o medo do invasor, e o gelo do tempo onde não há espaço público, muitos artistas com quem convivi eram francamente hostis.

Outros nem tanto, eram hostis só nos momentos cruciais.
Talvez ser vidente seja propor a vida como o mais urgente valor.
Penso também nas suas vogais. Nunca concordei com suas cores. Nos meus primeiros cadernos já escrevia sobre isso e fiquei chocado quando li o poema. A para mim tem tons alaranjados, lembra atividade e força. E é azul claro, quase branco, é sereno. I é amarelo, irritado, rebelde. O é branco, formal, ordenado. U é preto, profundo, ursino.

Você sempre foi um marginal por vontade própria. Contra as escolas mofadas e decrépitas. (Eu, talvez, marginal involuntário, incluído-excluído em turnos, porque meu mundo é mais perigoso, cheio de seitas fanáticas, e está mais difícil obter passaporte). Agora o sistema é global e um verdadeiro debate é impossível, porque felicidade é um sabonete e metal veloz, porque já nos deram a crítica com a crítica da crítica, porque a educação ruiu e as comunidades perderam sua diferença. Nossas elites deixam o povo sem transporte público e hospitais, dão migalhas de igualdade e defendem os direitos humanos na televisão.
Elas deixaram os pobres tão excluídos que eles criaram planos de carreira no crime e movimentam milhões, mas não vemos um movimento no sentido de sair das soluções de relações públicas.

Minha geração não tem mais contra o que lutar, somente contra o sentimento de que tudo já foi feito e está sendo vendido barato, que a vida mesma é secundária desde que você tenha algumas coisas. O conhecimento é uma forma de agressão. A natureza pode desaparecer. 

Agora que tudo parece e é vendido como muito estruturado, racionalizado, em franco progresso, os marginais são todos nós, vivendo como que à deriva, em um mundo dominado pela nobreza orgulhosa e bem articulada, com artistas que não conhecem a diferença entre opressão e libertação, uma tolerância e rebeldia que beira o fascismo. Nós já vimos tudo, e achamos que compreendemos tudo, somos cínicos e conformistas. Não temos mais um inferno para nos salvar. 

A desordem dos sentidos seria um bom veneno para a altivez petrificada, mas pode ser a forma mais acabada de acomodação. Enquanto isso, continuo marginal, porque o que busco não é o que se oferece. Mas quase não há mais esse mundo "outro", essa crítica ao modo de ser, essa problematização de toda a cultura e seus valores. Separamos "arte" de "ideal", mas podemos ter nos fechado numa caixa de chumbo, nem a posição temos para criar nossa teia. Abandonamos o dogmatismo (pseudo)marxista e ficamos vazios. 

Depois de vocês, o artista não tem uma lição à ensinar, ele quer duvidar e escutar, preservar através da destruição. Vocês adoeceram de morte o empreendedor guia que tinha como missão salvar os povos pelo trabalho. O sacrilégio, a preguiça, a luxúria são mais importantes que "Declarações de Direitos do Homem" feitas de domesticidade e honradez empobrecedoras. A realidade, que já estava pronta, no máximo uma questão de tempo, explode e a "razão" deixa de ser a "lógica do real". "A ciência, a nova nobreza!".

Ainda sobre você duas memórias:
Uma amiga pediu que falasse de você numa ONG da periferia. Quando contei seus erros e loucuras, pareceu ter sido imprudente. É como se ainda a "beleza" do poeta se misturasse a uma moralidade santificadora. Talvez o ícone medieval nos remeta ao alto, enquanto a lama toma conta do mundo e suas fraquezas. A descoberta da essência das coisas como trajeto incorrompido rumo ao acabado. A negação do tropeço iluminador. Da força dos objetos, sua teoria. Que o poeta ensina esse acolher da fragilidade, para que possamos andar em ziguezague, quando não temos certeza de nada, buscar esse desconhecido em si mesmo, uma voz pessoal.

Quando abandonamos os versos dos outros, já somos éticos. Porque fazemos coisas terríveis pela ambição de sermos parte de algo, de termos uma palavra de consolo, de estarmos de acordo. O que as pessoas chamam de "Rimbaud" pode ser ainda uma espécie de marca perfeita, um dogma, contrário a tudo que nos foi dito sobre a verdade do inesperado, do tumulto (ou, ao contrário, sua mitificação). A ética da arte é dialogar com o estranho da vida, querer abraçá-la, reconhecer seu rosto. 
Isso me mostra a incompletude desse nosso Brasil, sempre avançado, mas deixando pelas calçadas pedaços arcaicos.

Outra cena: lemos poemas franceses num bar, eu lia em português e um amigo no original. Abrimos debate. Uma moça que viveu muitos anos na França começou a falar sobre esse lado trash de Rimbaud. Meu amigo, de origem francesa, pareceu ofendido. Eu tentei confirmar, e daí?, mas não adiantou. Ou seja, a França, que foi nosso modelo de "civilização" na virada do século ainda é um ideal, um mito. Pior, a união do "belo" com o "bom" (mas um modelo pré-fabricado de "bom") é perigosa, porque os fascismos justificam sua violência pela beleza de sua pureza e ideais. Foi isso que sua geração mudou. A intensidade e a franqueza se tornaram valores e as coisas desse mundo ganharam seu direito à existir. Ainda somos colonizados. 

Mas se minha época é de confusão, individualismo e impulsividade, também porque nosso poder é suave, "liberal" e controla completamente as formas de participação e diálogo, posso dizer que vejo jovens absolutamente honestos e firmes, que vejo rebeldia real e mais disposta a jogar tudo, que novamente as velhas soluções parecem impossíveis. São ciclistas-ativistas, blogueiros, veganos, transgêneros, feministas radicais e gente que cria dinheiro local. Que ousam desafiar o que já foi decidido. Querem novos métodos. São videntes, mas não acham que sabem o caminho. São mais abertos à diversidade e não estão ligados à mesquinharias. Em um mundo que esconde de nós a verdade com tanto empenho, e corta as continuidades com sua instabilidade e rupturas, espero que esse espírito rimbaudiano viva da sua conexão com o passado e a razão, agora mais humilde e disposta à mudar.