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terça-feira, dezembro 31, 2013

Um animal

Um conto inacabado de Tchékhov.  Ele estava impressionado com o fim trágico de Guy de Maupassant. Ele havia lido no Malleus maleficarum sobre um padre com estranhos movimentos, que seriam possessão demoníaca. Tivera sífilis hereditária. “O senhor Maupassant transformou-se num animal”. Além do sistema nervoso central, pode ter se interessado em corrigir o sentimental conto “Relíquia viva” de Turguêniev de 1852: “A cabeça completamente murcha... como ossos finos, os dedos...” Seu primeiro contato com ele fora através de uma rica judia que pediu ajuda para a tradução das obras completas. Sua beleza de olhos negros, seu vestido de seda vermelha, uma garrafa de 1883 e uma noite estrelada me prenderam ao autor. Nunca acabamos sequer um livro e achamos melhor acabar com os salões literários. Ele leu sobre a vida do autor em Édouard de Maynial. Provavelmente, nessa época, fez as muitas anotações, que aparecem misturadas aos manuscritos de rascunhos do conto. Noites no mar, observando o céu nu, na infância. A mãe, prima de Flaubert. As tardes ensolaradas nas ilhas do Sena. A triste visão do jardim atrás da porta do escritório, durante o dia. As pesquisas do século passado mostravam que a sífilis era fruto de uma alma fraca, o que se provava mostrando a sua incidência entre os negros. As prostitutas acabavam com as famílias pelo amor e pela doença. A faca, a garganta, o hospício. O viajante. Como a Rússia. Os servos são libertados, o csar assassinado. Revolução no horizonte. Eu combato a cólera, eu ergo escolas nas aldeias. Turbulências. Argélia, Itália, Inglaterra. Exercícios, prostitutas, álcool, sexo, luxo. Terror, paranoia, inconsciência. “Sua vida de trabalho mataria dez homens normais”. A guerra. Febre. “Sei que alguém me observa, se aproxima”. Avós servos, médico disciplinado. O olhar científico observa? A sociedade das barreiras ruía. A última frase do conto, inacabado, diz: “Engatinhava quando parti do manicômio. Como acabou sua história, não sei dizer”.  

Afonso Lima

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