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quinta-feira, agosto 07, 2014

“Murphy” e o conceito de ironia no primeiro Beckett

O Beckett de “Murphy” (1938) é um crítico do século XIX, um modernista semelhante à Joyce que torce os eixos da prosa, mas ainda não os tritura. Para que o autor fosse visto apenas como um “Beckett inciante”, seria preciso um olhar teleológico, assim como a ideia de que o modernismo é uma única linha em direção ao império da forma; importa saber quais questões guiam cada momento, os recursos usados, os achados que tornam o material rico e potente.
Murphy é um “solipcista exausto”, que pretende “o mínimo para sobreviver”, que vive de “pequenas somas de caridade” e deseja apenas “o sonho franco da criança, do espermário ao crematório”.
O que o texto nos apresenta não é um enredo, apesar dos movimentos de um “agregado complexo reunido sob a unidade de um nome” como quer Anne Ubersfeld (p. 73), também não é um caráter ao qual possamos nos apegar, com o qual possamos nos preocupar dentro do manter da crença, na consciência do artifício, com o destino do ficcional personagem.
Antes, são contínuos jogos de linguagem, paródias e inusitadas apresentações de personagens e situações, que causam contínua surpresa e atenção. 

Que recursos são usados se não a identificação com o personagem, a causalidade e o suspense oriundo da coerência?
Um dos mais interessantes é o uso de imagens atratoras, carregadas de simbologia, figuras que se destacam do fundo opaco distanciado de experimentalismo – tão bem expressos na descrição em tabela da personagem Célia e na irônica referência da relação entre silogismos na escolástica – BAR/BA/RA (“como Murphy tinha tantas vezes demonstrado a ela em Barbara, Baccardi e Baroko”).

Como imagens atratoras funcionam o tetraktys pitagórico, o livro "A cidade do Sol", de Tommaso Campanella e as referências astrológicas. O que sustenta a ironia fria é um calor buscado nos clássicos e na antiguidade. De certa forma, o passado é usado pela sua ressonância emocional, enquanto o contexto mágico-religioso que o constituía é dado como morto.
As qualidades que surgem são o ritmo, o contraponto, a síntese-surpresa (“- Não consigo entender o que as mulheres veem em Murphy... - É a sua... - Sua qualidade cirúrgica – disse Wylie”). Esses recursos incluem o jogo entre presente de uma narração e presente do ouvinte-personagem, criando choques de percepção – como no trecho em que Célia, a amada, descreve seu primeiro encontro com o enamorado Murphy ao amigo Sr. Kelly: “Célia acostou-se a ele da melhor forma – Menina infeliz! - disse o senhor Kelly – de modo que dali saíram caminhando...”

Aqui começa a transformação do sujeito autônomo em camadas de pontos de vista, personagens-valise nos quais o centro está em toda a parte e não há circunferência.
Vejamos como Balzac apresenta a Sra. Grandet no seu livro de 1833: “Uma docura angélica, uma resignação de inseto judiado pelas crianças, uma piedade rara, um inalterável equilíbrio de gênio, um bom coração, faziam-na universalmente lastimada e respeitada”.
Na peça “Casa”, de Richard Maxwell, de 1998, o personagem “Mãe” diz, depois da metade do texto, quando ainda quase nada sabemos sobre os personagens:

MÃE – Meu Deus. Meu Deus. Meu marido está morto. O que vai acontecer com a casa? E com a pensão dele? Eu sei que ele tinha uma pensão, acho que nós temos direito a ela. Tenho que olhar os documentos. Eu sei que deixei em algum lugar, preciso procurar. Isto é bom, porque nós vamos precisar, e você ainda é menor. Trabalhar para o governo traz algumas vantagens. Apesar do fato de que você precisar se representar. Você tem que dizer a eles quem você é. Eu acho que posso dizer a eles quem eu sou. Você precisa dizer a eles. Quem você é. Senão você não tem existe. Eu acho.

Dificilmente, aqui vamos encontrar os temas do conflito, da ação e da causalidade que dão estrutura ao drama tradicional. Nesta mímese bizarra, se mantém um traço de realismo na indicação de “personagens” (Mãe, Filho, Pai, Mike) e no simulacro de ambiente (“PAI – Gosto de onde vivemos. A casa.”)
É o estranhamento de um universo aparentemente familiar que cria o suspense. O interesse da peça se dá mais pelo relevo da linguagem, seu absurdo, e pelo fato mesmo de que seus diálogos são opacos a qualquer caracterização holística, revelando antes traços de neuroses e manias. (Também aqui há intertextualidade com um clássico, Hamlet). Algo desse modo de uso do texto está em Murphy, no qual não é ainda absoluta a descrença na capacidade expressiva da palavra (os “meios” para os “fins”). 

Supomos que a tensão clássica do romance se dá pelo mecanismo da emoção correndo pela lógica da unidade – na psicologia, na consequência, na relação entre narrador e leitor. Grosso modo, o suspense se dá pela fórmula - “o que vai ocorrer ao personagem?” ou, mais modernamente, “o que mais saberei sobre essa personagem?” Propusemos que, em “Murphy”, o interesse ou a tensão se dá pela curiosidade sobre a linguagem, seu modo de operação, os recursos usados para operar esse personagem, marionete e autor singular do próprio absurdo. ("Cedo ou tarde, todas as marionetes deste livro choramingam, menos Murphy, que não é uma marionete").

De certa forma o que se está mostrando é mais o processo (os “bastidores”), a exposição da teatralidade, e, portanto, o fenômeno do pensar. Isso nos lembra as operações de Piscator e Brecht. ("A passagem acima foi cuidadosamente calculada para perverter o leitor cultivado").

Erwin Piscator (1893 – 1966) foi um diretor que influenciou profundamente a dramaturgia por meio de suas encenações e por tratar as causas sociais como tema. Afirma, no seu texto Teatro político, de 1918, realizar “o seu labor a serviço da luta do proletariado”. Ele pesquisa os “efeitos prejudiciais do capitalismo para a alma do homem”. (idem; grifo meu) Não busca mais uma dramaturgia do “eu - representação dos conflitos entre indivíduos e ambiente e indivíduo - mas mostrar diretamente as engrenagens e estruturas (a lógica subjacente) de problemas novos em todas as esferas: na vida social, na justiça, nos conhecimentos científicos e filosóficos...

Brecht, nos seus “experimentos sociológicos”, propunha uma espécie de análise científica do objeto personagem, observando os modos de operação, “uma superposição entre o que se chamava caráter 'culinário' do teatro e a crítica desse mesmo caráter. (Pasta, p. 92)
Ao sujeito descentrado, corresponde uma estrutura estranha, ela mesma, pelo menos montagem:
Contra a “peça bem feita”, último avatar do “belo animal“ aristotélico, o devir rapsódico do teatro contemporâneo coloca em questão a própria ideia de composição: transformada em montagem de arquivos de documentário em Weiss, justaposição de fragmentos narrativos e dramáticos em A missão de Müller, a escrita teatral obedece a uma lógica de decomposição. (Sarrazac , p. 42).

Podemos imaginar que o tipo ideal do século XIX era o indivíduo empreendedor, imaginário alimentado pela economia de Malthus – poucos recursos para muitos indivíduos, de modo que a vida seria uma forma de competição. No caso do teatro, ainda o “belo animal” aristotélico obedece a um encadeamento lógico, “tornada unidade de ação na época clássica” (p.42)

Nietzsche vai atacar o darwinismo justamente por ver nele um produto da moral cristã, e propor a natureza como abundância e absurdo desperdício, e a ideia de evolução e teleologia como sintomas. Em seu lugar, ele vê o contínuo declínio das formas de vida, o “orgânico como degeneração”. (Barrenechea, p. 61-64)
O ideal do sujeito estável, confiante nas leis da ciência moderna e na religião, que dão unidade de percepção e parâmetros para a ação, o sujeito que vive a culpa e o conflito e alimenta a autoreflexão, bucando seu lugar na sociedade, começa a declinar.
Como afirma Italo Calvino: “A realidade do mundo se apresenta a nossos olhos múltipla, espinhosa, com estratos densamente sobrepostos”. (Calvino, 2007, p. 210) Nessa situação, tanto a unidade de percepção, quanto os parâmetros para a ação não são claros, e uma posição solipsista pode ser um sintoma, uma reação lógica, uma criação (a “autodestruição” criadora de Nietzsche).

Impossível não lembrar dos exemplos de Barteleby, de Heman Melville, que, em meio ao trabalho que “urgia”, toma distância, transforma o outro em “estátuas de sal” pelo estranhamento - “prevalecia com ele alguma suprema consideração que o obrigava a responder como fazia”. Allan Poe, no seu conto “A carta roubada”, mostra uma polícia “perseverante, engenhosa, astuta, e perfeitamente versada nos conhecimentos do seu ofício” que, no entanto, não consegue avaliar o raciocínio do “oponente”. O fazer não é o bastante; o como e o por que surgem novamente, a ciência não pode ser o único modelo da sociedade: “Os axiomas da matemática não são axiomas de verdade geral. O que é uma verdade de relação, de forma e quantidade, é muitas vezes enormemente falso com respeito à moral”.
Da mesma forma a clínica do olhar de Charcot, esse “fotógrafo da histeria” como o chama Saurí, em Salpetrière, será desafiada pelo recuo ao ouvir de Freud. Charcot afirmava que não se ligava às teorias preconcebidas, e sim “àquilo que surge da experiência, como se pudesse existir um olhar neutro e objetivo, e como se a sua fosse uma mirada ingênua”. (Alonso e Fucks, p. 34) Com Freud a histérica deixa de fornecer “quadros vivos” e obedecer à leis da ação e reação, da exposição num mecanismo habitual (movimentos epileptiformes, alucinações, etc) e passa a ser analista de si mesma, a elaborar situações de grande carga afetiva, nas quais a descarga era impossível de acordo com os códigos vigentes.

Agora interessa no personagem seu modo particular, sua filosofia de vida, sua avaliação do mundo (espelhado no fato de Neary, amigo e rival de Murphy, ser um “pitagórico”, que estuda a “harmonia” ou o “acorde”). Ele prega a não ação (é impossível “deduzir o que você é a partir do que você faz”), ele nem imagina “lutar”, ele prefere “não mudar”. Interessa interrogar o “real” (até mesmo através do olhar periscópico joyciano, que adota as mais variadas formas) e saber que densidades pode criar a arte para questionar os hábitos de percepção.
Em “Murphy”, não há a unidade da identificação, o narrador-personagem que leva o leitor-personagem a pensar como o personagem, mas há o narrador, o vazio e o objeto. Talvez esse seja o conceito de ironia no primeiro Beckett. “Pois o problema da ciência não pode ser reconhecido no terreno da ciência” - diria Nietzsche no “Nascimento da tragédia”.

Afonso Lima


Alonso, Silvia e Fucks, Pablo. Histeria. São Paulo: Casa do Psicólogo, 2004.
Barrenechea, Miguel [et. al.] Nietzsche e as ciências. Rio de Janeiro: 7Letras, 2011.
Beckett, Samuel. Murphy. Tradução, texto e notas: Fábio de Souza Andrade. São Paulo: Cosac Naify, 2013.
Pasta, José Antônio. Trabalho de Brecht: breve introdução ao estudo de uma classicidade contemporânea. São Paulo: Duas Cidades/Ed. 34, 2010.
Sarrazac, Jean-Pierre (org) Léxico do drama moderno e contemporâneo. São Paulo: Cosac Naify, 2012.

Ubersfeld, Anne. Para ler o teatro. São Paulo: Perspectiva, 2010.

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