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domingo, dezembro 14, 2014

O duplo

Ele achara que estava sendo perseguido quando tomou um coche para ir embora da Ópera.
Estava assustado, no fundo, eu iria ganhar uma distinção que meu pai nunca tivera.
Quando o conheci? Num café de Viena, onde se discutia fervorosamente a lenta decadência do demônio de Laplace, do objetivismo da ciência que se considerava indestrutível. Freud parecia nervoso naquele dia.
Eu subi no palco, recebi o diploma, tive a impressão de vê-lo na plateia e desmaiei como o mais tolo animal criado pela evolução.
A culpa sempre é um duplo - escreveu o médico no seu escritório.
O império mais antigo do mundo, antissemitas agredindo pessoas, industria florescente, bancos, a "dissociação", a dança, a música, o teatro: os homens se reuniam no seu clube para debater lógica e epistemologia.
Cruzo uma rua, entro numa viela escura, aquele homem tem um aspecto sombrio, veste-se com desalinho, mas no entanto. No entanto. Serei eu?
Eu fui assistir sua conferência, eram umas vinte pessoas ouvindo alguém que, como Musil, falaria das "secretas existências no homem", e ele falou: os genitores seriam os primeiros objetos dos desejos eróticos da criança, incitada pelos próprios pais; os sentimentos seriam de hostilidade, tanto o como de ternura. Saldo: duas mulheres de chapéu saem entre cochichos, homem alto de terno cinza parece dormir, três homens com jeito de estudantes aplaudem em pé e silêncio.
Agora eu tenho certeza. Ele existe e está neste café. Olhou nessa direção? Eu o convido a sentar-se? Ele está se levantando, se aproxima, estou gelado.
...Na espreguiçadeira do convés, o doutor semidormia: via ao longe o fantasma de sua irmã morta e, mais perto, uma jovem em vestido de verão, que parecia chamá-lo para a vida.  - Primeiros rascunhos.
Uma máscara, seu rosto parecia ter se transformado.
"Muito prazer. Arthur. Também tenho consultório. Podemos ser amigos".

Afonso Lima

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