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quarta-feira, dezembro 23, 2015

Meu irmão brasileiro

Venho por meio dessa dizer solidariedade a quem cava cava cava a dura realidade
De linhagem de viajantes, de parede de letrinhas, vem o marujo das entrelinhas
Ter os pés no chão, ser tão joão em Ipanema, a vida encontrava o poema
E você é um farol em tempos de obscuridade o que é esse Brasil que ninguém sabe
Amar ser herói na terra encantada onde você me fez brincar
Moleque, os pés n´areia branca, as trevas desaparecem quando o sol se levanta
Do tempo do ferro do tempo da esmola vive ainda a moçada da escória
Segue teu caminho amigo irmão que a curiosidade de como onde para quê é a nossa salvação

Afonso Lima


sexta-feira, dezembro 18, 2015

a massa

Mataram um homem.
Não é um homem, é um garoto.
Com 17 anos já se pode portar uma arma.
Ele não tinha nada nas mãos.
Era pobre. Era um pobre perigoso.
Não, era negro. Não, ele não merecia.
Armados, protestam, gás lacrimogêneo.
Por que suas mãos estão levantadas?
Uma massa de negros. Colocaram crianças lá para desviar a atenção.
TV ao vivo, podem falar sobre escolas? Sobre encarceramento? Sobre policiais que ameaçam? Na rua por quatro horas e meia.
Milhares de pessoas saem às ruas, ok, isso é uma democracia. Se não fosse uma democracia, isso tudo seria horrível.

Afonso Lima

domingo, dezembro 06, 2015

Acalme-se

Antes de aplicar o choque é preciso avisar que não vai doer. Mas vai doer.
É preciso dizer que não doeu. Que vai melhorar. Não vai.
Diga aos familiares que ele não morreu. Está desaparecido.
O calabouço com água até os joelhos por seis meses, a cela onde, nu, fará suas necessidades, o que enfiarão em sua boca, o que fará arrebentar seu tímpano, têm uma lógica.
Diga que tudo isso tem um motivo. que vamos trilhar o caminho do progresso.
Diga que os rebeldes são terríveis, temíveis, que as senhoras respeitáveis no shopping - sensatas e contra a violência - e os jovens que defendem Margaret Thatcher para subir na vida devem se assustar.
Diga que a resposta é violência.
Diga que você sabe muito, diga que eles não sabem nada, diga que isto não está previsto no manual para cortes de 1996. Que não reduzimos cultura e educação há anos para fazer monumentos de cimento. E quando você não souber mais a diferença entre as coisas, nós te ofereceremos medo, perguntas e soluções.
Diga que não estamos voltando ao século XIX, diga que não são escravos adiados, diga que a educação vai melhorar.
Diga que não precisamos de ninguém cuidando os lobos, porque lobos são confiáveis e você só precisa conquistar seu espaço. Que existe esperança se você for normal.
Você é vital ao sistema, pague ou deixe-o,
Enquanto você sonhar e você gritar nós diremos: "volte ao seu lugar".

Afonso Jr Lima


quarta-feira, dezembro 02, 2015

Queres

Ela abria a mandíbula e preparava as garras para engolir o duplo que ajoelhara-se ao lado do corpo.
- Eu apelo para tua mãe, Noite.
A deusa surge em meio ao caos e a devastação.
- Quem me chamou?
- Eu sou um pobre pescador. Aqui jaz meu corpo, engolido pela terra que desceu. A cidade desapareceu. O rio encheu-se de ferro. Meu corpo não pode ser enterrado. Por isso, tua filha Queres vai devorar-me e jamais poderei descansar.
- Essa é minha função, ninguém achará o cadáver, não podes ficar eternamente habitando ao seu lado - ela diz.
Nix observa o cenário triste. Era como uma pomba esmagada por uma pedra. Árvores escuras, animais mortos, o cheiro no ar.
Ela arrasta Queres e as duas desaparecem numa nuvem cinzenta.

Afonso Lima




segunda-feira, novembro 30, 2015

Duplos

Ele dorme. Derruba a jarra de água.
Uma caravana chega a uma torre no deserto.
Seja bem-vindo, amigo.
Somos chamados de o inimigo interno. Até inventaram histórias macabras em que sacrificamos crianças.
Somos os três filhos de Abraão. Eles dizem que somos essencialmente violentos, mas foram eles que derramaram sangue em nossa terra. Se formos maus, eles podem nos roubar.
Acolha-nos, somos perseguidos. Eles estão na escuridão, são miseráveis, e agora desejam tomar o mundo superior imaginando-se os escolhidos.
Assim como os judeus que viram o Trono de Deus, o Poeta, na Noite, encontrou os profetas anteriores e foi abençoado para dar a mesma mensagem às tribos que nunca haviam tido um profeta.
Deus abençoe a Recitação e as riquezas do califado.
A jarra de água cai no chão sobre o tapete.

Afonso Lima

domingo, novembro 29, 2015

Um muro

Antes, havia a restrição de não se aproximar do muro. Havia cercas e havia o bosque proibido, tiros e alarmes que soavam colocando as pombas desavisadas em pânico. Agora ninguém parecia disposto a alimentar uma pomba velha. Estava com frio e sua liberdade não ajudava. Então era assim? Os que estão bem estão bem porque combateram com mais coragem, foram mais fortes? Se tudo for difícil, os ganhadores ganharam. Ele não podia evitar a sensação de que alguém barrava seu caminho, de que podia ser muito mais, voar muito mais se tivesse um vento favorável. Encolhida perto da calçada, lembrava dos dias em que tinha comida, entregava mensagens para os ditadores. Agora os prédios estavam vazios, os homens pareciam marginais, as crianças não saíam de casa, não era seguro. A pomba fechou os olhos. 
Afonso Lima

sábado, novembro 28, 2015

As bestas

Maiorca, 1232. Nasce.
Agora seus pais têm uma terra, a reconquista.
Aprende árabe, estuda teologia cristã e muçulmana, prega.
Lê as fábulas das Epístolas dos Irmãos da Pureza Muçulmana, pensa em uma fábula.
Conhece Kalila e Dimna - versão árabe do Panxatandra indiano, duas versões: o livro que o rei Afonso X havia dado - traduzido ao castelhano - para a esposa do rei francês Felipe o Belo, que o traduziu ao latim, e a tradução de João de Cápua para o mais elegante latim, de 1278.
Decide ir até Paris pregar na universidade, escreve ao rei pedindo audiência. É recebido.
Após o fim cruzadas, em 1291, o cristianismo abandonou a Terra Santa aos infiéis, afirma, é preciso converter os tártaros para que destruam os Sarracenos. Pede a Felipe o Belo que envie embaixada ao Khã mongol da Pérsia, que simpatiza com a cruz, com ouro e presentes, expondo-lhe a necessidade de expulsar mamelucos da Síria e da Palestina. Também pede monastérios onde se aprenda a língua oriental.
Sua palestra é um fracasso. Tem um acento "arabista", dizem os doutores.
Ele retorna à sua ilha, funda um mosteiro, é chamado à Paris anos depois ("velho e pobre", como se descreve) para o grande Concílio, no caminho escreve um Livro no qual o mal conselheiro do rei, que o levara a prender o Papa e os templários, é retratado como raposa, o que lembra Kalila e Dimna. Morre aos 84 anos, quando suas afirmações sobre conselheiros fanáticos "não de Deus, mas do Estado" foram defendidas pelo jurista Pierre Duby, que escreveu Da Recuperação da Terra Santa.

Afonso Lima

quinta-feira, novembro 26, 2015

Bambee

Bambee sempre achara que Paraíso era imortal. Ele e toda a União da Estrela do Rio tiveram que subir para bem longe da lama que destruiu a cidade. As sereias e os seres invisíveis sentiriam muita dor. Seu pai está agora evocando, com o Sumo Sacerdote, os espíritos dos cervos ancestrais. Eles os aconselham a subir até a grande Torre e pedir ajuda ao deus das tempestades. Comem as folhas sagradas. As almas dos animais mortos se levantam do chão brilhante de restos metálicos para assombrar os homens gananciosos. Sobem até o castelo. O deus prepara raios. O pai se despede do filho, se transforma em nuvem negra e parte carregado de raios para dizimar a raça humana. 
Afonso Lima

terça-feira, novembro 17, 2015

Trecho do romance "Canções para Dias Difíceis" (inédito)

Trata-se de dinheiro, duto de bilhões dos contribuintes dos Estados Unidos, do petróleo do Iraque para corporações; abrir mercados com a guerra. Eliminar a indústria do país, invasão de trabalhadores estrangeiros, reconstrução com subcontratadas das subcontratadas que não fazem nada direito, governo que significa entregar pacotes de notas de cem dólares. Somente o que atinge fisicamente, os nervos, pode levar à pensar. 
Eles eram uma raça inferior, repetiu o comandante. Eles não entendem a democracia, ele disse. Eles gostam de empresas públicas ineficientes e corruptas. Eles tinham medo que suas empresas fracassassem diante da competição estrangeira. Vencem os melhores é uma lei biológica, dizia nosso comandante. Mas parece que os trabalhadores daquela fábrica se negaram a abandonar seus serviços. Agora não tinham água tratada, eletricidade duas horas por dia, usando lenha para cozinhar, um clérigo juntou desempregados para consertar as linhas de telefone, instalar geradores, dirigir o tráfico. A iniciativa privada comprou essa companhia, a primeira coisa que irá fez foi reduzir o pessoal. Eles pensam se colocam fogo ou se explodem dentro. Não será privatizada. Quatrocentos mil soldados demitidos com suas armas. Cimento e trabalhadores importados, sem geradores para as antigas empresas estatais que poderiam produzir. Empresariado financiando a violência, porque suas fábricas acabaram. 
Fecho os olhos. Escuro. Por que agora? A educação-lixo, os políticos fundamentalistas, oligarquias. O sistema de exclusão do Brasil, 

"Canções para Dias Difíceis" - Afonso Jr. Ferreira de Lima

segunda-feira, novembro 16, 2015

Depois da reconstrução

Estou vindo da reconstrução. Não merecia receber estilhaços e ver pratos e mesas voando durante o jantar.
Você está bem, deveria agradecer. Espero que o J. saia logo do hospital. Acalme-se, vou acender o aquecedor. Um jazz. Não podemos sair de casa.
Será que aquele inferno todo. Eu me sinto mal.
Mas os ideais por trás disso. Era uma ditadura, tinha a existência de armas, o terror jihadista.
Um governo opositor nacionalista. Nós lutamos sem saber ao certo.
E a tortura. Quem poderia imaginar que... um milhão de soldados.
Nós fudemos tudo. Acabamos com tudo. Desmoronou, eles não ia aguentar. Uma moça disse que antes não usava véu, agradeceu ironicamente. Sem tratamento de água.
Não se pode prever o mal antes. O mundo está mais inseguro, fazer o que. Marcas de sangue no chão.
E não teria sido um pouco propaganda? Gastamos mais com isso, gastamos bilhões.
A incerteza moderna. Prefere sushi ou pizza?
E nós estávamos lá, falando em contratação em meio ao caos.
Era uma reforma terceirizada. Pizza de quê?
Um milhão de dólares para deputados e senadores.
Vamos tomar um vinho. Você tem de ser menos radical. Você viu o que está passando na TV?

Afonso Lima

A jornada

você pode ficar aqui em casa.
estava escuro e. ótimo, estou cansado, obrigado.
e esse corte?
tive de passar pela cerca.
o homem louco. em nome de Deus.
sim, sim. sabe, estava tudo bem, até que fui preso sem motivo.
sem motivo, sem motivo mesmo?
sim, e meu amigo desapareceu.
agora está tudo bem. você sabe, nossa família respeita muito as refeições em família.
ok, tem uma fila ali embaixo.
o banheiro, pode usar na padaria.
naquele caminhão, morreram alguns que reclamaram da água.
você vai superar. eu fico louco com eles, simplesmente doido mesmo com eles, quem pensam que são dizendo não aceitamos mais ninguém, só espero que não nos faça pagar essa conta. sua cidade não existe mais, espero que não seja deportado, mas pode ser que. não use símbolos religiosos, somos laicos. seja forte e não tenha medo do spray de gás. você pode ficar aqui em casa.

Afonso Lima

domingo, novembro 15, 2015

Em perigo

Período de mudanças. A polícia secreta cria um documento, editando trechos de um romance de 1835, acusando o grupo de "semear o ódio de classe, o ódio de raças". Eles querem invadir, destruir nossa identidade, penetração com planos de domínio. O racista cria a raça. A crise do czar ganha novas causas. Perseguições, incêndios, fuga em massa. Eles compraram uma casa na serra, depois do oceano. Eles criaram galinhas. Mas uma janela é quebrada. Um bilhete ameaçador. Notícias de parentes desaparecidos. Um dia, a mulher encontra na parede do galpão escrito com sangue: "Morte aos comunistas do demônio". Uma nuvem negra sobre a casa. Eles se dão as mãos e dormem para sempre.  

Afonso Lima

sábado, novembro 14, 2015

Preservar

Preservar a vida. Preservar toda a vida. Cuidar do pequeno, do detalhe, do tijolo e do tecido.
Celebrar. Eu celebro o labirinto da regra, o instante da rosa, o pássaro negro, a paz e o verde inseto. O primeiro amor de um átomo.
Incerteza. A nuvem pesada. O não esperado. Mutações do azul.
Um futuro para a vida. Um rio que corre, uma saída possível, uma luz na noite para doces amantes.
Preservar a dança, o beijo lento, preservar a erva e o erro. Celebrar o caminho de volta.
Perguntar. Descansar. Deixar entrar o ar. Correr pelo gramado verde até o lago.
Evitar que o bem seja imposto, não esquecer da necessidade de suprimentos.
Preservar a cor da vermelha lanterna, o chá, a temperança quando a brisa é suave.
Ler um livro e controlar o fogo, gato adormecido.
Financiar a vida. Planejar o espaço para a vida. Vê-la crescer. Controlar o medo. Amar o lodo, um querer de outro, o corpo que não habitamos. Nutrir, rever o caminho, aceitar a voz não pensada, o não ensinado, ir ao estranho. Não reagir pelas leis canônicas, não aceitar a tradição. Mar aberto.
O menino africano que vai para a escola, a mulher do deserto, a moça japonesa na janela.
Não esquecer o tempo de cada coisa, não sucumbir à hierarquia. O que é urgente para que tudo corra bem.
Não sucumbir às explicações fáceis, não deixar que o ouvido adormeça.
Preservar o translúcido, dar a mão, achar espaço para o que sufoca, pensar sobre o pensar em bloco. A raiva cega. A certeza medonha. Guardar no corpo o prazer da corrente, uma fábula sem força, uma fábula com o que não entendo. Preservar a mudança.
Com vulcões, com leões, com todos os tremores e raios.
Evitar as palavras de ódio. Preservar os sonhos mais loucos, as teorias mais profundas, o mais complexo sistema, fórmula ou painel, o inverno sem limite, o que é disso tudo, e tudo é caminho, matéria, tudo é celebrável. Achar um tempo para a célula, um passo com os pés no chão, uma noite de paz.
Preservar o frágil evento.

Afonso Lima


quarta-feira, novembro 04, 2015

A árvore

caminho pelo verde, a árvore grávida de tantos frutos grossos
pela estrada, folhas molhadas, o céu pesado
quero deixar aparecer o que existe
catálogo de nós cálculos primeiros a escada
listar botão de rosa lírio azul e carvalho
caveiras mexicanas barcos em Portugal uma manifestação em Paris
mensageira de simpatias mutabilidade canto o existente
a ti, poeta, tudo que não vistes, e cabe a quem duvida
desempregados britânicos, soldados russos de 1917, cidade destruída pelo fogo
Paris e Londres com palavras ameaçam
operações inexistentes corvos
dois impérios destruídos ossos
queimam as bibliotecas cada pensamento encontra seu nome
livre empresa num mundo em ruínas, povos famintos
cidade grande, arranha-céus, bondes elétricos, coelhos em Helsinki
e favelas onde brincam crianças, paz, caminhando nus perto do rio
o neon, o perfume, subclasse, imigrantes

o fogo adormece o velho da montanha ensina doutrinas cinzentas
que os homens medíocres são juízes e prosperam
não somos todos iguais não o mito da pedra
sonho de afirmação pura flor amarga
esperando serem transformados em homens de novo
enquanto acumula as coisas transcendência e por ser algo de belo
na madeira a escrita organiza a cidade
algo irrompe a sabedoria os homens santos unem palavra e força
à noite o rio atravessa tantas vezes o rio
o peso dessa alma eu deixe seja olhos
esqueça os signos que uma geração perdida observa
não julgo assisto à novidade e tudo de primeiro se torna grande e essencial
de meu tempo mergulhando nos sonhos sombrios
mas no sonho chapéu e guarda-chuva ouro e prata são Natureza
árvore dos céus, cada ramo um deus
silêncio esqueço o mundo que rola
mergulho e busco um mundo na infância
rumo à mitologia ao texto das eras
eu que amo o corpo das coisas que Eros une

a força de pensar busco reorganizar amor
quero fazer as primeiras perguntas, esquecer tudo
O lago cercado de árvores que nele mergulham
a névoa no parque que esconde o caminho
chove, a velha casa cai sob o fogo, e alguma música distante
ciganos, botas marcam o tempo
cavalo branco brancas dunas
que o vento move

Afonso Lima

terça-feira, novembro 03, 2015

The river

Land of castles, I look for my face
the ghosts in the streets, I want no power
Just a green, a free place
to revive my soul, naked flower
the river and the light I loose that I
If the trees, my loud music
If the clouds, I´m looking for me

Afonso Lima

quarta-feira, outubro 28, 2015

À Noite - tradução de Percy Shelley (1792 - 1822)

Veloz andar sobre as ondas qual fera
   Noite de Luar!
Fora da caverna onde esperas
Onde, o dia longo e só vês passar
Tecendo sonhos de alegria ameaçada
Que te fazem terrível e amada
   Rápido, teu voar!

Em capa cinzenta sua forma escondida
   De estrelas enfeitada
Com seus cabelos cega os olhos do dia
Coberta de beijos, não quer mais nada
Vaga sobre o mar, terra, cidade
O ópio da tua magia por toda parte
   Venha, tão desejada!

Quando acordei e acordou a manhã
   Suspirei por ti
E cai a tarde sobre verde e flor
E volta exausto o dia ao seu descanço
Um convidado que demora sem amor
   Suspirei por ti.

Tua irmã Morte veio em prantos
    Você me queria?
Teu filho, o Sono, olhos-santos
Murmurou como um inseto do dia
Pouso em teu colo? E respondi
Não penso em ti
    Não te esperaria!

A Morte virá quando tua arte morrer
    Tão, tão depressa!
O Sono, quando ela se perder
De nenhum deles bênção eu peça
A ti eu peço, Noite, vem abençoar
Suave seja o teu voar!
Vem depressa, depressa!

tradução: Afonso Lima

aniversário

era para eu ser elite burra você teve a terra dura era para eu acreditar na notícia você, foto na polícia era para eu saber com ganância você teve a arrogância eu não sou o que devia você é o que podia
não aceitar o fatal não são essas coisas mas as outras não é o mesmo mas o incerto para o poeta o ouro e o besouro são oradores do sem nome

Afonso Lima

sexta-feira, outubro 16, 2015

o personagem

Era um menino de três anos.
"Era um menino com três anos."
Tinha as bochechas rosadas, sorria tão alegre.
"A mulher ficava ao chão, insone, gemia, queria comer terra."
Quase três anos e o escritor o punha sentado em sua cadeira e lhe fazia cócegas.
"O marido dera para beber, ela andava em desalinho, abandonou o lar pelos mosteiros".
No seu pequeno túmulo o escritor se desesperou, ele também deixou a mulher muita noite para jogar e beber.
"Ela chega a um mosteiro, onde há um santo. Senta-se numa pedra."
Por certo era alegre e lhe fizeram o retrato. Por certo tinha um cavalinho de madeira.
"Por certo tinha uma camisa azul e botas novas."
Eu imagino o escritor que não pode esquecer, seu olhar perdido, que olha a cadeira vazia.

Afonso Lima

romantic rock

When is gray my heart
the rain and night sounds so loud
I can't say why and what
I jump to the big moon
The golden cloud over the world
In my old ship with horses of fire
There is a magic tree with singing apples
Another language in my art
And sea is just like a rainbow
A kingdom I can go higher
And becoming blue come to home soon

Afonso Lima

quinta-feira, outubro 15, 2015

o rito

porque afinal os moinhos não eram de vento
eram de pão e do lado do que é terra é que está o poeta
destruição em massa de tudo que se fixa se autoriza se enobrece
e se a própria destruição se envaidece
a arquitetura fria da cruel metáfora a devora
nada é tão frágil como o objeto - sob vigilância
torturado por murmúrios de eras
a brutalidade verdadeira a ignorância assustadora
se o moinho não moer não há aventura
abismo, jardim de violências, ossos a palavra elétrica
luta sangue pobre voz fantasma de coisa com átomos e luz
não sabemos o que é, cada pedra lisa e folha escura
olho nos olhos cinzentos do meu tempo
páginas que caem, ensaio de sons desarticulados, caindo aos pedaços
Deus lia um livro quando teve ideia de criação só no livro se ouve o coração
o meu sertão é um vento sem rosa
lembrança de loucura vento adiante
como tanta coisa a poesia é inventada
para nos salvar dos leões pensamentos sensatos

Afonso Lima

sossego

mas que coisa enfim é o desassossego
semelhante ao mau tempo - imagino
e que rima com desgosto
nada menos poético que nascer na capital
fingir-se de cientista das coisas esquecidas
nem tudo pesa nem tudo regra como no ido tempo
a dor, a mesma fúria de silêncio morno medo talvez
a nossa lua é um farol dói de absoluto
as flores no portão não nem uma itabira
de violão perdido ou relógio vago
desassossego eu faço no bico do
meu aço de tudo e
das palavras pouco entendo

Afonso Lima


Sobre o poema

os deuses secretos do poema
são os leves ligeiros pássaros
de cabeça vermelha
que cantam o sentir alheio
na alvorada
(mesmo que imaginada a paz é querida)
quando no branco busco aventura
me entrego e abro a porteira
minhalma salta que não sabe nada
a corredeira da vida e possíveis reis
e um dia a rima do verso talvez
atrás da página escondida
os sentimentos perdidos (que os achados já cansei)
e a noite que o mundo procura

Afonso Lima

meditation

come Nature teach me the way to myself
looking inside, analysing my own movements, learning what I am, what the silent says
roughly living, toxic city, just more for more
the right of not understanding, the right of reorganize the world
the new word, not finding oneself, the new way into the forest
animal no exigencies
working in immobility prophecies and wisdom
learning from the changeable fire wind
sea voice that utters
forgiving myself, discovering I´m not what they want
what shines, what past bring me
come Nature teach me this freedom not I
before all the concepts before I and them
And let me give always more than receive
come Nature and I will learn with mountain and sky
come Nature into your vase
for peace and joy and a new day

Afonso Lima

quarta-feira, outubro 14, 2015

poesia calculada

Acordem as estrelas, acordem
Que os homens têm muito chão, tudo cão
É preciso ingenuidade calculada, olhar de fora
No país que falta poesia a poeira cobre o direito
de existir de cada coisa
Ajustar o orçamento para o invisível, sufoca o coração de
fazer dinheiro, ganhar a vida, e marketing e indústria cultural
Que a imaginação cria e nada está concluído
Acordem as zombarias, os cantos, as inutilidades
Acordem as cores do divino e os sonhos dos mares
Tudo que amplia que estremece que desmente o já dito
O que parece é apenas pensar acostumado, ao sol bocejando
Que seja a tristeza, que seja a injustiça, que seja o melancólico amor
Acordem as estrelas, acordem sim as almas dos objetos tão concretos
Que a cidade não duvida a cidade vive longe longe tão longe de si mesma

Afonso Lima

Casa em ruínas

Que encanto farei para te refigurar?
Para que encarnes um corpo, para terdes de novo lugar?
Que canto cantarei, se não sei de rocha e deserto
e só quero um modo de fluir de um humor sagrado tudo é mais de perto
nem uma montanha nevada, nem uma viagem sobre os tetos, um homem
pede comida a língua universal e o nó da garganta fala mais que mil versos das ruínas
na sujeira boca sem dentes em pleno domingo comendo na calçada do palácio
somente o grito que sabe o ferro e a noite o tempo que dança a guerra e por isso persiste

Afonso Lima

terça-feira, outubro 13, 2015

dança de domingo

cada vez menos folhas e o rio
a terra negra, quase lembrança
(tem dono, tem medo, a terra-preço)
quando eu nasci os anjos já haviam morrido
nem soube dizer nascido isso sou eu quem não gostar azar o seu
sem montanha de olhar míngua a espinha de ferro
quero ver tua matemática se nela cabe o incidente
é a rua que respira uma flor rosada uma grama imprópria a horta que fertiliza a letra
e no samba do amor do olhar pelo swing (amor de eterno por joão)
nasce a palavra imprecisa, à margem,
                                               palavra aberta à coisa toda
nunca vista
(observo o relevo verde do fruto que engordou e chão)

Afonso Lima

Sobre Daniel

Meu jovem, você que me faz essa pergunta pelo twitter, é preciso estudar a teologia, não adianta apenas estudar a Palavra, porque o mundo é cheio de cultos dos demônios, de livros idólatras, de imagens idólatras, o culto dos demônios nas lojas e nas universidades. Na minha dissertação de mestrado eu analiso o Livro de 1925, "A Palavra". Ali o missionário afirma que 2.300 tardes e manhãs, como você pergunta, se referem à 2.300 anos até a volta do Senhor. Refere-se por isso ao Gênese. Mas quando se interpreta 2.300 anos como 1.500 dias e portanto 1.500 anos aí se erra, pois essa é a interpretação exegética que não é do nosso missionário. No capítulo 9, percebemos que só se pode ficar na profecia se 2.300 forem anos. Eu sugiro que leia os nossos livros: "A profecia de Daniel no século XXI" e "Daniel venceu - o Segredo Profético". Vejo que você tem lido muitas coisas em fontes erradas. Recorra às fontes primárias, ao que Deus escreveu e nosso missionário. Para saber se algo é verdadeiro leia o livro do missionário e compare com a Bíblia. Não deixe que coisas dos demônios entrem no seu Santuário. Obrigado e continue conosco. 

Afonso Lima

letras miúdas

o exercício da paz nas
coisas desse mundo
miúdas, prontas, no espaço
a paz na praia e no relógio do aço
paz de bicho cascudo, na rua e na palavra
viva
paz do fôlego, do íntimo sufoco,
da solidão
paz do irrealizado
da avenida lotada
do silêncio
paz do fogo, pequeno céu cheio
de menores belezas
constelação da fases da lua, poema do acaso
o amor das coisas desencontradas
paz para um mundo novo
que a realidade é uma
descoberta

Afonso Lima

segunda-feira, outubro 12, 2015

Azul

(para J.F.)

Vênus e o azul no horizonte
Abolido o tempo, luz e luar
Dia que se esconde tão lento
Os bichos renovados e o cheiro do mar
(um só momento de nulo discurso também é aventura)
O sonho do azul que tudo modifica
A amizade, o brilho reinventam o ar
Areia, estrela - é o que significa
Os sinos começam a cantar
(são as duras criaturas sem armas deitadas no crepúsculo de noite pura)

Afonso Lima

Talvez a Sérvia


Totalmente incerto sobre o seu futuro. O pouco o que expressar. Que tipo de estranho ser é esse, aparece, desaparece. Esse estranho mundo, que sonha com sonhos. "O tempo dos Habsburgos sonhava com a harmonia de uma totalidade, unindo artificialmente um mundo em pedaços", alguém diz. A beleza das coisas que ainda não nasceram completamente. Sob o olho-lua da mente, um homem e a neve no seu pescoço. Começar.
-
Ele partiu para Praga em 1939 para estudar Direito. Mas as universidades foram fechadas naquele ano. Depois, veio a outra ditadura. Seus livros só foram publicados décadas depois, ganhando o mundo. Esses manuscritos são da época em que trabalhava como guarda de armazém, caixeiro-viajante e metalúrgico.

- Apontamentos - "Mas ser mandado embora? O que será que eu fiz?" - diz o autor na sua biografia. Um jovem é colocado para fora de sua casa como castigo. A mesma cena de Kafka. O peso de uma lei arbitrária. (Ou um amor que ensina a adaptação, ainda não existe o coração livre). Por acaso, ela se duplicava num Império decadente e autoritário. A modernidade foi o poder absoluto. Talvez um deus que afoga e pragueja.

"Como um tolo, simplesmente não tenho talento para a quantidade de humilhações e silêncios que um homem pobre deve suportar em sua estrada pela ascensão" - escreveu X em uma carta.
Um estranho, um excêntrico numa época na qual não há clareza. Talvez ele venha da Sérvia. "Por que eu, leitor, devo perder tempo com esse herói?" - diz o russo.

Acordo às 2h e 33 min para escrever: O que Freud aprendeu com Dostoiévski foi a repressão (a lei? supereu?). Sua alma rebelde foi terrivelmente barrada com o medo da morte. Teve de sublimar seus sentimentos num aparato católico. Teria enlouquecido se não pudesse falar com máscaras. É por isso que seus personagens radicais têm tamanha força, são seu eu reprimido. Talvez esse herói seja uma mulher. 

Ou um jovem de 13 anos. Pálida, controlada, incapaz de ler em uma biblioteca por recato. Ela leva seus livros para um lugar afastado? Um cemitério? No fundo, cheia de paixão. "Ela usa uma capa de reserva para esconder sentimentos violentos", me disse minha mãe sobre uma moça.

Uma ideia. Por viver num mundo seu, fantástico, gênio-ingênuo, "ignorando as regras", "contra o falso gosto". (Schiller) Uma máquina-espelhar. Hamlet é uma espécie de máquina que faz aparecer o que as pessoas esconderam, o que a razão tornou normal. Ele enfia uma foto do marido (rei) morto na cara da mãe, que ainda se deixa ser uma mulher medieval. Não foi o incesto que Freud viu nessa cena. Da mesma forma a peça que representa coloca Cláudio dentro de um insight sobre si mesmo. - Entra no estúdio do pai e "rouba" autores. Ou ignora pretendentes. 

A imagem de uma mulher pálida, ruiva, caminhando resoluta com sua capa me aparece. Talvez seja ela que conversa no túmulo da falecida mãe, que publicara um livro aclamado, que morreu ao lhe dar a luz. Ela, criticada pela madrasta por ler demais e dar pouco valor ao trabalho da cozinha. "Um herói modesto e indefinido". Não mais por hora. 
-

Em 1963 seu primeiro livro foi lançado, com sucesso. Em 1968, dois livros foram proibidos. Em 1976 seus livros são liberados. Todo um sistema de livros clandestinos, entretanto, funcionava. Em 1981, um filme inspirado em seus escritos ganhou o Oscar. 

Afonso Lima

sábado, setembro 26, 2015

Pobreza em Plínio Marcos - sobre "O Abajur Lilás" de Tanah Côrrea

Pelo que eu entendi, a geração de 1970 no Brasil, tentando reconstruir um pensamento depois da escuridão que se abateu em 1968, e, isolada dos impulsos vanguardistas que, na França, por meio de Artaud, do surrealismo, de Beckett e de Ionesco leravam a um teatro antidramático, metalinguístico ou lírico, na Inglaterra, através de Beckett por Harold Pinter, a um teatro de estranhamento e da linguagem transformada na tradição realista, e, na Alemanha, através de Brecht, a um teatro de alguma forma (apesar de tudo) aristotélico na evolução, mas com a autonomia de cenas brechtiana, seu antiemocionalismo, que levam finalmente ao antipsicologismo e à ênfase na encenação, e mesmo ao teatro de Heiner Müller, metafórico, descritivo, antiutópico - a geração 70 retoma uma forma dramática mais clássica. 

Portanto, se Plínio Marcos sobreviveu é porque mostra uma realidade selvagem, tem personagens incríveis, conflitos intensos e (apesar de limitações como a repetição de falas a que a unidade de tempo leva) só precisa de uma direção boa o bastante. Pois é. 

A direção é de Tanah Corrêa. O cenário é de uma pobreza assustadora: estantes de compensado das Casas Bahia, paredes de madeira rosinha-claro mal pintadas, uma poltrona vermelha, e tudo isso sem um pingo de ironia, distanciamento, ou seja o que for. Não passa a ameaça que poderia passar, nem a miséria, mas o caricato, sendo um quadro na parede a reprodução mais fiel de um clichê de "arte". Assim, o figurino não transforma esteticamente a pobreza, mas repete a novela, para horror de quem pode ver. Assim, a atriz principal imediatamente causa surpresa por ser uma senhora gordinha, sendo que a personagem é prostituta. Logo entendo a metáfora: ela é uma sósia da presidenta, e chama-se Dilma. Uma pegadinha, ha. Mas sua atuação é exagerada, inacreditável. Com seu segundo figurino ridículo (verde oncinha brilhoso), num cenário cafona, vira um todo Zorra Total. Só supera sua companheira de cena, a bêbada mais caricata que São Paulo já viu. Então entra uma atriz magérrima, boa, mas quase sem voz. Depois, quando Dilma é torturada, a platéia cai na risada quando dizem: "Bate na Dilma, a culpa é da Dilma" ou equivalente.  

Com a plateia às gargalhadas, parece involuntário uma certa empatia pela Dilma quando ela por fim desmaia. O que se pode salvar aqui é o texto. E a atuação engraçada de Nuno Leal Maia, vejam só. Será que os diretores não precisam sonhar que o realismo real já morreu? Assim como a pessoa que odeia a violência na arte porque "é ruim" ou não quer que os gays casem porque "não é natural", estão no convervadorismo de que o que é literal não é ficcional. Como homenagear Plínio assim? Retrato de um Brasil mal educado, que, como Bolsonaro, acha graça do que não gosta e quer que a presidenta saia por "doença ou coisa pior".  

Afonso Lima

sexta-feira, setembro 25, 2015

O fim da cultura

Repórter - Enquanto isso, em Atenas, os gregos estão quebrando os pratos.
(Péricles e Platão vestidos com túnicas).

Péricles
Nós vamos ter de fazer alguns cortes aqui.
Platão
O que você quer dizer?
Péricles
Platão, a economia mudou. Financiar gente para falar do mundos das ideias, francamente...
Platão
Mas e já estou tentando criar produtos novos.
Péricles
Produtos?
Platão
Produtos pedagógicos.
Péricles
?
Platão
Uma teoria sobre as cavernas.
Péricles
Ah, bom. Isso vende. Que tal... Caverna do dragão?
Platão
Não. É sobre as sombras. Pode ser que um dia alguém invente um aparelho para as pessoas ficarem olhando as sombras.
Péricles
Que bobagem, ninguém vai perder tempo com isso. Você sabe: a Grécia está passando por uma crise. O banco Europeu Transmacedônico mandou cortar tudo. Estamos criando um plano de exílio voluntário para filósofos e imigrantes.
Platão
E o Eurípides? Também vão expulsar aquela bicha bêbada?
Péricles
Só ficarão os artistas. E a polícia. Com tanto corte em saúde e educação, vamos precisar de pau e circo.
Platão
Se eu pensasse uma cidade, ia expulsar os artistas. Homero é pura pornografia.
Péricles
Nós vamos dar um jeito neles. Patrocínio.
Platão
Eu vou me matar na frente do Parlamento!
Péricles
Bem, bem. Outra opção é uma limpeza linguística, a criação de produtos mais globalizáveis. Por exemplo: A “Apologia da Coca-Cola por Sócrates”. Ou “O Banquate no Mac Donalds”. Ou “ O Agronegócio da República”.
Platão
Um dia isso tudo vai virar uma teocracia! A Marcha para o Mundo das Ideias. Um símbolo solar, cercado de doze discípulos zodiacais e capaz de ficar três dias no inferno sem se queimar! Nesse dia, os artistas não receberão nenhuma verba! E só a gente vai ter o kit gay.
Péricles
Platão, você nunca pensou em fazer stand up?

Repórter – E agora, um exemplo de como a globalização mudou as pacatas cidades do Nordeste.

Afonso Lima 

segunda-feira, setembro 21, 2015

ofim

Vamos cortar o orçamento
Vamos cortar o orçamento no bairro sujo e feio
Vamos cortar o orçamento do coral de senhoras machucadas pelo tempo
o teatro de mulheres enrugadas e homens que vieram comendo poeira no pau-de-arara e não podem se defender.
Vamos cortar o teatro que apresentam para os netos depois de limpar, passar, construir paredes por séculos
Vamos cortar o orçamento da senhora curvada que conta sua história da senhora enfeitada de batom vermelho da senhora que usa óculos amarelo e tocava piano mas tem tendinite
o senhor de pele escura que canta na rádio e formou um grupo de música caipira
vamos acabar com essa festa essa bobagem no pátio da escola esse luxo
o bairro sujo o lixo e o leito
eles não podem se defender

Afonso Lima

sábado, setembro 19, 2015

A fábrica

- Onde o senhor vai, você diz. E meus direitos?
- É o novo cadastro.
- Faz anos que cruzo aqui.
- As coisa mudam. Qual seu nome de registro?
- Eu já lhe disse que eu perdi.
- Como assim?
- A argola não era tão boa.
- Ah. A desculpa de sempre.
- Olha, meu pai era líder de um bando histórico chamado "Noites Brancas". Eles viraram até filme.
- E eu com isso. O senhor está cruzando uma fronteira internacional. Somente os pássaros nascidos aqui tem cidadania.
- Mas eu sou um animal cosmopolita.
- Eu espero que o senhor compreenda. Se não, terá de ser recolhido. Essas são as cabeças dos pássaros rebeldes.
- Eu não posso voltar. Está frio lá embaixo.
- São as regras.
- Mas quem é seu superior? Quem criou isso tudo?
- Eu sou um pássaro mecânico. Fui criado para responder sempre a mesma coisa.
- Ok, então. Vou ver se consigo lidar com a neve.
- Se o senhor quiser, pode ficar na fábrica abandonada radiotiva que existe aqui em baixo. Alguns ovos nascem com duas cabeças, mas fazer o quê? São os novos tempos.

Afonso Lima

Uma viagem

No aeroporto, os aviões não decolam. Cansada. A mulher fantasma.
- Não adianta. A cidade está dominada pelos rebeldes, é perigoso. Não poderia levar seus filhos.
Machucada. Havia pedido ao marido. Hospital. "Você vai morrer aqui comigo".
Seu eu ia se apagando, imagens de como andava com joias pela rua, de como ouvira Queen na sua terra. A sogra fantasma morrendo longe de casa.
- Como uma irmã. Você vai se ver comigo, disse o cunhado. Seus filhos são seus, sua mulher não.
Em casa, perdeu a fala. Ameaças. A casa apedrejada. As bombas. As filas para receber comida. Os que se lançavam no mar.
Precisava sair.
- Eu sei como você a maltratou, disse o profeta. Não seja maior que Deus.
No aeroporto, os aviões não decolam.
- Eles decolam da fronteira.
Dentro do avião, pensou nos que foram mortos por serem da religião do governo. Dorme.

Afonso Lima

rosto

- Ainda não consigo ver bem seu rosto. Você está numa mesa de bar.
O outro não responde. Ainda não tem um olhar.
- Você tem barba. Você fuma um cigarro. Passa uma criança com um balão. De onde você vem?
- Eu trabalho com túmulos.
- Que tipo de trabalho? Os cemitérios são cheios de pássaros? Você coloca as lápides? Você transfere os cadáveres?
- Eu fui educado naquela escola. A escola dos mortos. Muitos de nós compartilhavam os mesmos ideias. Muitos de nós achavam que eles eram culpados, culpados pelo capitalismo financeiro e pela crise. Nós não éramos apenas vítimas. Os colegas me ensinaram a tirar arte da pedra. Foi bom. Tínhamos muito trabalho.
- Olho para você. Por que ainda não vejo seu rosto?

Afonso Lima

Mudança

- Amiga, eu te falei. Tem que ir na casa de dia.
- Agora já era. Estou de mudança de novo.
- Ver se tem claridade. Tudo cinzento, em plena manhã.
- Agora já era.
- Só não entendo... Não dava pra ser mais perto?
- A terra já não dá pra mim.
- Mas, e de noite? É seguro?
- Me garantiram que sim.
- E nos dias de tempestade?
- Tá caro demais.
 - Caro. Um corpo precisa ocupar um espaço.
- Estão em promoção. As nuvens. Lançamento.
- Ok. Deve ser bonito de ver os pássaros.
Um dia, que tal, me visitar? Amiga.
- Claro. Eu tenho medo de altura.

Afonso Lima

No bar

- Mais um uísque?
O homem levanta a mão branca. As paredes têm um papel de parede desmaiado. As cadeiras resistem em carvalho centenário.
- Há trinta anos vocês eram jovens soldados. Jovens soldados em chamas e eu os acolhia atrás desse balcão.
Alguém pede amendoim.
- Quem diria? Quem diria?
Eles começam a cantar um hino. Um velho corretor de seguros, desmemoriado, pede um brinde para ela.
- Eu sinto pena de vocês. Cabelos brilhantes. Relógios de prata. Até botas envernizadas com cuidado. Que cruel. Tudo coberto dessa poeira cinzenta. Veja, as árvores ficam brancas e depois ficam vermelhas. Mas vocês. Não pensem que me esqueço. Não pensem que deixarei vocês na mão. Olhem. A lua está chegando. Ele virá. Vamos dançar. Vamos dançar e aguardar.

Afonso Lima

A aldeia

- Mas quem é o senhor? Não pode fumar nesta casa. Por que usa esse casaco grosso?
Ele parecia não se importar.
- Então quer ouvir nossa história?
O primeira ministro aprovou a lei de expulsão em massa.
- Voltamos a viver sem água encanada, diz a mulher. A aldeia é onde mais se sofre.
Ela tira a filha da escola. A menina não aguenta mais.
Os camisas negras fazem patrulha ao redor das casas. À noite, não se atrevem a sair, armas apontadas de cima da colina.
- Por causa de alguns legumes. Por causa de um carneiro. Por causa da garotinha que o carro atingiu e do motorista assassinado.
Uma casa é incendiada. Pai e filho fogem.
- Os dois foram abatidos enquanto corriam. Eles foram abatidos como animais.

O estranho enche o cachimbo. Cai a tarde.

Afonso Lima

Yellow Hat

Pierot, the bird, was the most insane bird in the forest.
He saw - in the very first cold morning of the winter, the girl, the girl walking in the mud.
I´m going there, he could listen she saying, nothing you do can change it - she said to her mother.
The little shy girl, with her yellow hat, had discovered a group of drunk, annoying and foreigner men. They had good voices and played music, they made people pay for some stories.
Cause the girl discovered what she was in that place. They said she could sing. Sing in the stage as a girl.
But Wolf was there.
He said: Well, why do you lost your time with things like that. Why don´t you look for the seeds, and make the bread, why don´t you care about the babies and drive our cart?
She was sad. See said: I believe I need a drink. He said he could show her new things in a pub.
-
Pierot was angry. He flies over her hat, he screamed and looked as a monster to Wolf.
He said: You need new words. You need a world with more questions.
Of course, nobody could understand it. But she stopped. And she went by the other way, the long way.
Grandma.
Pearls.
White dresses of white lace.
Musty smell.
Some smell of urine.
The priest said they had no more money. They had no more money, and the church was being destroyed, to create a new parking lot for the new waggons.
And the big hall where the plays used to be played, well the new place is much more small.
Grandma organized a movement. She let him dresses the white dresses.
-
The bird - once Pierot was singing in the third tree besides the red house - had listened too mummy saying to Wolf: Can you believe the dresses It dresses? ("It" has become her new nickname to mummy). The books it read? It can stay in the dark playing with dolls.
I said to her: Can´t you see what you have between your legs?
Become pretty, there is one way, and the other people are ugly, fat and deserve no respect.
Wolf said: I will convince her going hunting with me.
And so, Wolf - always fast - arrived with the Priest and the Hunter. They said Grandma was too old and should go to a sanitorium.
But she had a big mouth, she disagreed. They killed her and put her hearth in a vase.
When Yellow Hat arrived, she was not there.
Wolf said: You could be a cricket player. She could be a surveyor. You could open people´s bodies with nice knifes in places full of people in white and cloroformio.
Concrete things. Useful things.
This ridiculous clothes. This ridiculous hat.
It´s not working they said. She need a lesson.
Now. Look the blood in your legs.
But Pierot flies away calling the drunk actors he had saw in the way.
They saw the blood in the priest´s cassock.
They said: You must be strong. All you have is yourself.
There was a fight. Knifes and three men under the tree.
They took her to a new life.

Afonso Lima

sexta-feira, setembro 18, 2015

mar

No alto do monte, a torre.
- Mas o que o senhor faz aqui?
Silêncio.
- O que um homem como o senhor faz aqui?
Silêncio.
- Está rindo de nós, não é? Rindo de toda a humanidade. Está rindo dos equipamentos eletrônicos, carros brilhantes e câmeras de segurança, não é?
Silêncio.
- Está sorrateiramente rindo das risadas na cozinha, das facas no restaurante e dos dias ensolarados na praia?
O homem deixa o gato subir no seu ombro.
- São vocês. São pessoas como vocês que me deixam enfurecida. Nem as guerras sangrentas, nem as mães com filhos no colo, nem mesmo a cidade queimando em cinza lhe desperta piedade.
O mar escurece e sobe e uma lua branca domina o céu.

Afonso Lima

domingo, setembro 13, 2015

Perigo

Eles o levaram para trás do muro, então.
Não exatamente.
"Não exatamente".
Não exatamente.
Ele deitou no chão.
Podemos dizer que sim.
Ele levantou as mãos. Ele deitou no chão.
Antes, ele tirou a camisa.
Ele deitou no chão. E depois sacou uma arma.
Impossível saber. Foi tudo muito rápido.
Ele se escondeu atrás do carro. Saiu com as mãos pra cima. Deitou, sacou uma arma e se escondeu atrás do muro.
Mais ou menos.
E apareceu morto.
Ele resistiu.
Ele resistiu.
Não faz falta.
Estou perdendo meu tempo, não é?
Ele é um desses perigos pra sociedade.
Eu acho que pior é quem trai os amigos.
Como?
O que eu faço com vocês? Nunca ouviram sobre câmeras de segurança?
Elas não pegam atrás do muro.
Ah! É mesmo. Legal. Apareceu uma arma ao lado. A arma que vemos um otário pegar no carro. Ao lado de um homem sem camisa. Morto. Vocês me dão dor de cabeça.
O senhor quer uma aspirina?

Afonso Lima

quinta-feira, setembro 10, 2015

A cidade

A cidade era um monte de ruínas. Era perigoso sair para buscar comida. As crianças se atreviam a brincar entre escombros, mas corriam para casa ao avistarem algum estranho ou ouvirem aviões. No cair da tarde, o céu violeta, um batalhão chega para passar a noite. Já ninguém se atreve a fazer muitas perguntas. Pediram água, o prefeito fez chegar no acampamento tinas de água, que gasolina já não havia. Linguiças feias. Luz, há muito, durava quatro horas por dia. O medo é como uma fina poeira na noite seca. O chefe tinha marcas nos dois pulsos. Quiseram a presença de músicos. Os homens foram trazidos na praça, o velho tocador de flauta, os dois meninos do tambor, o cantor. Os oficiais batiam os pés discretamente, depois dançaram como crianças. Aos poucos algumas almas arriscaram se aproximar. As mulheres, com medo, olhavam por detrás das frestas, das colunas, na escuridão. A lua estava alaranjada, grande. O cantor lembrou de uma mulher que se apaixonou por um soldado, que foi embora e a deixou sufocando de tristeza. Um dia, ela soube que ele casara. Os homens fizeram um momento de silêncio. Ouviu-se o vento nas montanhas. 

Afonso Lima

Na estação

A chuva ficou mais forte agora. O frio. Ao redor da universidade, algumas ruas escuras. O tumulto das bancas de comida. A menina senta no degrau, tinha perdido seu boné, não queria molhar a cabeça. O pai podia ficar furioso se voltasse com os cicletes. Cuidado, a mulher disse quando o marido foi sair do prédio. Invadiram tudo por aqui, abriu o guarda-chuva para caminhar até o carro. Ela quis se aproximar para oferecer um chiclete, um dos sapatos, furado, deixou entrar a água. Ela se encolheu na porta. 

Afonso Lima

Hope

there is hope
when I fight against speech explaining me the world
there is hope
when I do not accept what they tell me, that nothing could change
here is hope
I refuse to accept that cruelty is the essence of the world
a new day always can be created
the real is dispersed, but I have hypotheses about it
no. say no
cause we care
there is hope

Afonso Lima

quarta-feira, setembro 09, 2015

Elizabete Costa Spiel


Não acho divertido. Não. A chuva começou às oito horas da manhã, ao meio dia tinha virado uma tempestade, um furacão às três da tarde. A luz caiu. Eu procurei uma vela, a luz ia sumindo. Sem lua. A piscina, uma mancha negra lá embaixo. A vista do vale era uma mancha negra. Eu andava no escuro. Meu celular estava sem bateria, eu não podia ler, não podia ouvir música, não podia foder ninguém. Pensei em bater no vizinho, desisti em um segundo. A noite se aproximava. E eu achei que tinha dado certo, quando casei com o cara certo. Ele me pagou um uísque, me comprou um carro e me levou para sua casa na serra. Ontem, eu tinha televisão. Eu me lembrei das coisas estranhas da minha vida. Uma longa vida fascinante com todo tipo de coisas e pessoas estranhas. Meu personagem podia falar assim. Uma mãe pobre e doida, que deixava a menina com uma avó doida e surda para dançar por aí. Eles dançam no escuro. Eu nunca entendi o uísque, ela diz. Ontem, morreram algumas pessoas, ele diz. Foram mais que algumas pessoas, na realidade, ela diz. Eu digo para ele, isso é pouco. Poder falar. Só isso não basta. Desde que fiquem no seu lugar, ele diz. Meu trabalho exige muito de mim, ele diz. Que vençam os melhores, ele diz. O governo disse que não ia pagar salários. Ele tem outros planos. Os policiais não trabalham de graça. Meu personagem podia falar assim. Um pai morto muito cedo. A mãe chorou pouco e colocou flores durante três anos, depois cansou. Ele, eu conheci onde eu trabalhava. Eles dançaram no escuro. Pensando bem. Não posso escrever no escuro. Os policiais não trabalham de graça, eu digo. Agora, nós, nós sabemos. Ele tem outros planos. Ele precisa da crise. Então, começaram as mortes. Ontem, eu tinha televisão. Meu personagem podia falar assim. Nos demos bem, eu e ela. Eu nunca errava os talheres. Compramos juntas bolsas com pérolas. Eu nunca fiz as perguntas erradas, a mãe dele nunca fez as perguntas erradas, somos felizes. A noite chegou. Uma sensação estranha. Experimento cobrir a cabeça com o edredom. Ontem, morreram algumas pessoas. Foram mais que algumas pessoas, na realidade. Não é tão grave, ele diz. Ele está dirigindo por aí e não há um único policial na cidade. A vida sempre dá um jeito, ele diz. Talvez eu não merecesse, minha mãe diz. Experimento alongar, dançar na escuridão. Experimento comer algo no escuro. Experimento respirar fundo. Olho lá fora. Não vejo nada. Agora eu tenho que ficar aqui sozinha, pensei, sozinha em minha cama numa escuridão completa no mundo. Ainda uma tempestade. Todo tipo de coisas e pessoas estranhas. Uma longa vida fascinante. 

Afonso Lima

segunda-feira, setembro 07, 2015

Max

Eu cheguei em casa cansado. Eu botei os meninos no colo e disse: Me façam ter orgulho, crianças. Eu derramo o meu suor para por comida na mesa de vocês. E vocês me ouviram, sim, olha só. Eu sempre disse, eles são perigosos. Eles vão nos perseguir. Vocês agora são a lei. Vigiam eles. Sempre nos ajudaram, os da lei. Se algo acontecia, mandavam um esquadrão de noite que executava meia dúzia. Para alertar. Guerras de quadrilha. Se pensava. Começa com a colheita de provas. Depois, os nomes de testemunhas no claro dia. Juradas de morte. Anuladas nos tribunais superiores. A nova ordem exige profissionalismo. São três equipes. A primeira, executa. A segunda, esconde as provas. A terceira, registra o crime. Você se foi, Max. Você era o melhor, Max. Você nos traiu Maxwell dos Santos. Investigava grupos de extermínio formados por sua unidade. Eu, que te botei no colo, estou triste com você, Max. 

Afonso Lima

quinta-feira, setembro 03, 2015

Não há bombas

- Não estamos numa guerra, não é mesmo?
- Não.
- É um mundo livre, não?
- Um mundo livre, sim.
- Não estamos numa guerra.
- Não. São apenas velhos, negros, velhos negros sem oportunidade que vagam como sonâmbulos e comem arroz com as mãos.
- Não há cadáveres de crianças, estilhaços, pedaços de bombas ou ruínas.
- São apenas velhos, velhos sujos que moram embaixo de cobertores, ou papelão, que se encolhem nas calçadas em cima de papelão.
- Não há crianças mortas na praia, mutilados, ruínas ou armas apontadas. Não há bombas.
- São apenas velhos negros sem sapatos, com suas calças sujas, mancando, pedindo comida ou bebendo cachaça, pedindo comida ou bebendo.
- Não há sangue e ruínas, não há refugiados. É uma grande cidade. São prédios brilhantes. São mesmo altos, luminosos, são grandes prédios modernos e brilhantes.
- Pedindo comida. Ou carregando sacos. Ou comendo com as mãos podres restos de lixo. Ou se masturbando na esquina. Ou gritando no meio da rua. Ou catando piolhos. Velhos negros sem ocupação.

Afonso Lima

mensagem

- Nem uma lágrima?
- Não.
- Nada de jornais e televisão?
- Não.
- Nada de gritos como um animal sore álbuns de fotografias?
- Nada disso.
- Nada de berros e socos, "mataram meu filhinho" como nas novelas?
- Não. Já tivemos mortes o suficiente.
- Silêncio? Silêncio completo?
- Completo. Silêncio eterno.
- Ok. Você entendeu. Você é esperta. Você está sintonizada com a coisa toda. Eu sinto muito. Sabe, eu gostaria de sentir mesmo muito. Você poderia denunciar. Você poderia ameaçar a todos nós. Assim é bom. Nada de gritos.

Afonso Lima

quarta-feira, setembro 02, 2015

na rua

o bater grave da máquina começou cedo
o sol frio, algum vento, ainda assim flores como sangue num caminho de pedras
um animal grita sinfonia impecável, dobro a esquina, pelo chão
restos de casa, panos e tralhas, um homem
ele encosta as nádegas na terra, livre em mundo de ninguém
é um bicho, meu Deus, é um bicho

Afonso Lima

haikai

ontem, folhas verdes, agora insetos circulam
três papagaios monitoram o céu apressados
do tronco folha gira e brota e peso de fruto
uns já saem da casca amarela, outros, gordos, cada um tem sua primavera
a ponta do botão é roxa, agora dobram-se
três ametistas sobre pétalas brancas ou azuladas
eu, que parecia só sobre a terra
reverente, vejo passar sol e noite

Afonso Lima

terça-feira, setembro 01, 2015

Escola

"No Brasil, o talento é mal visto. Quem se destaca é perseguido" - sua tia havia dito.
Ele era um menino inteligente. Com 12 anos tinha lido toda a Bíblia da mãe três vezes.
Os outros meninos jogaram seu caderno no vaso sanitário. Seus pais foram chamados.
- O Carlos apresenta problemas de comportamento, disse a diretora. Queremos saber se sofreu abuso, se vocês estão brigando em casa, se tem demonstrado algum sinal de perturbação.
- Meu filho é um dos melhores alunos pelo que sei, disse a mãe.
- Que tipo de problema de comportamento? - perguntou  pai. Acho que ele foi humilhado pelos colegas.
- Seu filho é afeminado. Nunca notaram? Os outros meninos têm medo dele. Um pai veio reclamar. Achamos que precisa de tratamento psiquiátrico.
Carlos ouvia em silêncio e ficou vermelho.
Os pais saíram cabisbaixos. "Precisamos achar um bom médico", disse o pai já dentro do carro.

Afonso Lima

domingo, agosto 30, 2015

Anna e Bárbara

Anna:

Bárbara, Bárbara
Nunca é tarde, nunca é demais
Onde estou, onde estás
Meu amor, vem me buscar"

Chico Buarque e Ruy Guerra

Bárbara :

Anna, Anna,
Ando perdida
Sem tua visão
Sem tua carícia
Sem tua ilusão
amiga


Sem teu olhar ando apenas
Pelas ruas nuas
Sabendo que minhas horas são tuas
Ando apenas
Longe de mim


Anna:
Me protege do mal
Me mostra, me decifra
Me beija, me aviva
Me cria com tuas palavras
Assim


Bárbara:
Acariciar os teus sonhos insanos
Teus beijos crus
Teus desenganos


A noite toda te trazer no peito
Te descobrir os caminhos estritos
estreitos
Te dizer versos sem nenhum alento
Enquanto chove.

Anna (murmura)
( ...Por onde vou sou apenas tua
Vago pela noite em procissão imunda
- Pelos espelhos cai a chuva
insana -
Sabendo que me esperas
doce e nua
Na tua cama ...)

"Onde estou, onde estás, meu amor
Vem me buscar..."


Afonso Lima

segunda-feira, agosto 24, 2015

O dia em que meu irmão foi preso

No dia em  que meu irmão foi preso eu estava fora do país, numa bolsa de pesquisa dada pela pós-graduação da Universidade.
Eles foram fazer uma manifestação contra um supermercado de uma rede multinacional. A polícia chegou dando porrada em todo mundo. Os caras do carro de som foram ameaçados de serem atirados lá de cima, algemados, ouviram que podiam ter "provas" plantadas para incriminá-los. Até a advogada com carteirinha da OAB foi algemada. Muitos anos depois um amigo contou que a polícia do Maluf também dava porrada nos punks e skatistas "para ensinar desde cedo a ser conservador".

Minha mãe, filha de militar e criada para falar baixo na época da ditadura porque qualquer coisa poderia prejudicar seu pai, em estado de choque. Meu pai chorou como uma criança.

Na época um amigo de meu irmão escreveu um email: "Quero salientar o teu pai, eu nunca tinha conversado com ele, mas hoje tive essa honra. Teu pai não é mais um o machão galdério. Me pareceu mais um senhor maduro, porém muito frágil quando o assunto são seus filhos. Quando ele soube que tu seria preso definitivamente no presídio central, o olho dele tava cheio de lágrima, não se aguentou e saiu para o banheiro. Tem um amor muito profundo e sincero por vocês, porém, guarda a culpa de não conseguir nunca expressá-lo como realmente gostaria. Este pai nunca aprendeu a expressar tamanho amor pelos filhos, perdoa esse pai que sofre tanto com a distância dos filhos, porém não sabe agir diferente."

Minha irmã estava na faculdade e recebeu a notícia da prisão primeiro. Como contar? (Minha avó era o tipo de mulher que pagava as contas muito antes de vencerem). O pai - sempre otimista - não ia acreditar que o menino que só estudava era caso de polícia. Aqueles presídios imundos com 1400 presos, quando o máximo era 500. No Pará, serviam até uma gororoba em saco plástico, curte de custos... No país onde de 2000 a 2015 a população carcerária subiu sei lá o que, e os pobres vão em cana por um pino de maconha, revezamento de excluídos. (Os traficantes, esses pagam.)
Será que haveria algum assassino na cela? E estuprador? Minha irmã liga para um advogado que diz que "só vão passar a noite lá", "é só um susto". A mãe tinha tido um padrinho, rico, mas informado, que levara uns choques na ditadura, não podia ouvir em polícia. Até hoje minha irmã diz que foi um dos piores dias de sua vida.

Eu sonhei naquela noite que ele e outras pessoas estavam numa espécie de salão de vidro, como um navio, e ondas gigantes passavam por cima deles. Meu irmãozinho era uma criança alegre, contava histórias homéricas, dançava, jogamos muito futebol nos fundos do prédio, nessa época nosso pai trabalhava viajando no interior do Rio Grande do Sul. Quando brigava muito com minha irmã, ganhava como castigo, provavelmente contra toda a lógica, ler livros, e reclamou para meu pai aos 11 anos ter de ouvir uma palestra sobre física quântica.  Minha pedagogia...
Durante anos essa criança havia suportado minha retórica enquanto tentava se concentrar em algum livro de Érico Veríssimo ou José de Alencar. Uma vez, abri um livro de Kant e comentei: "Que bom, esse texto está sublinhado, nem lembrava que tinha lido". "Fui eu", ele disse cabisbaixo.

Meu irmão dormiu com outros vinte presos, homens sofridos, homens "marcados pela sua situação social", como narrou depois. Ele disse que só sentiu uma grande tristeza. Um bando de universitários idealistas, esses rapazes sentiam de repente que não podiam se manifestar, que qualquer irrupção de rebeldia podia colocá-los no mesmo nível em que viviam os brasileiros muito pobres, uma sub-cidadania controlada e reprimida.
Ele escreveu depois:
"As  celas  eram cubículos  gradeados,  escuros,  úmidos  e  muito  frios. Misturavam-se  restos  de  pães,  banana,  urina  e  fezes,  onde,  por  vezes,  passavam ratazanas em busca de alimentos. Ali, sentados, os presos políticos passaram boa parte da noite. Fantasmas começavam a rondar suas mentes. Eles foram ainda trocados  de cela  uma três  vezes durante  a  noite,  passando também por identificações,  fotografias, etc. O mais duro durante a noite, porém, foi suportar o frio lancinante, que congelava seus corpos permanentemente tiritantes, sentados em uma bancada gelada, durante toda a noite. Dormir um pouco era um sonho impossível." Quando eu li isso, lembrei-me dos manuais que durante anos a CIA fomentou na América Latina...

De Buenos Aires, eu apenas acompanhava tudo pelo skype e pensava que minha avó estava certa. "Vocês pensam que as coisas mudaram, não mudaram nada".

Afonso Lima

Sapatos

Num dia de chuva, cheguei à escola onde trabalhava como estagiário durante a faculdade para descobrir que a aula seria num outro endereço, uma espécie de show-room, junto com uma professora, que, então, me ofereceu carona.
Ela sempre me tratara bem, mas todos comentavam que era arrogante e chegava a humilhar alunos e estagiários. Existe esse tipo de pessoa madura, bem educada, profissionalmente bem sucedida, mas no fundo autoritária e intolerante, acostumada a saber e a explicar. São elegantes, falam com cortesia, mas você percebe o tempo todo que não passa "de um simples..."

Começamos amontar as coisas (meu apoio era mais psicológico), até que solucionei um problema numa placa com uma simples fita dupla-face.  "Você já sabe como eu sou", ela diz com frieza educada. Sai de mim uma ironia fora de hora, como tantas vezes: "Para o bem e para o mal".
A manhã segue seu curso com os alunos cosmopolitas falando seu vocabulário de seita até que uma aluna próxima a mim responde: "Eu não sei o que você está falando!" E eu completo: "Até o dia em que nenhum de vocês fale em português!".
Ela dá uma risada simpática. Nesse momento meu sapato molhado por algum motivo sai do meu pé e fico vermelho porque aparece o papel que eu colocara para fugir das poças de água, revelando que eu não vinha de carro. Não posso dizer que lembro do rosto dessa moça, se foi de pena ou de desprendida compreensão.

O dia acabou com a professora quase sorrindo pelo trabalho realizado, o que significava que todos tinham feito "como ela queria".
Como isso não é uma história, mas uma espécie de crônica, não tem moral da história, nem clímax. Eu apenas carrego a grande humilhação daquele momento e a lembrança dessa professora serena, com seu ar superior, mas que guardava tanta frieza e desprezo dentro de si.

Afonso Lima

domingo, agosto 23, 2015

Aprendendo a andar na Paulista

Um homem adulto tira uma selfie. De quê? "Eu de byke na Paulista". Festival de byfie.
É a Holanda? "Não é que as pessoas vão comprar bicicletas. Elas já têm. Só não tinham onde andar" - alguém me diz.
Lembro-me de Porto Alegre, quando o PT fez uma ciclovia na beira do lago Guaíba, mudando a vida da cidade.
A coisa mais legal que vi na avenida foi um menino aprendendo a andar. O pai orgulhoso parecia dizer: "Caminhando na Paulista!"
As crianças roubaram o show: jogando bola com os pais,  em cima do ombro, na bicicleta. "Cuidado com as pessoas", a mãe diz. "Oi, pessoa", o menino passa por mim.
Muita música. Bob Dylan e sax. Comidinhas em food bykes. As pessoas sentadas no meio-fio. Bolinha de sabão.
Alguém teve a ideia de colocar uma bandeira-sinal na ciclovia mesmo sem carros. Os ciclistas educadamente esperam o verde.
"É isso que ele quer", diz o PM, "as pessoas convivendo".
Lembro que no cinema tem sido muito comum gente mandando mensagens, ou seja, competindo luz com a telona. Um rapaz, esses tempos, mandou uma, na segunda eu reclamei, na terceira quase apanhou de um cinéfilo. Uma vez um cara me olhou com uma cara de susto: ele nem percebia que estava em público?
"Na Dinamarca, a lei regula os proprietários", me diz um amigo estrangeiro. Numa cidade onde só é importante o que defende o proprietário individual (até o MP fez o favor de ser contra - "Ele passa o fim-de-semana em NYC", me dizem) e é o tombamento é "ilegal", como disse alguém do CONPRESP para o secretário da Cultura, é surpreendente um prefeito comprar essa briga. Baumann definiu certa vez o neoliberalismo como "um jardim sem jardineiro". A direita, como disse um amigo, está simplesmente fora da realidade. "Defender a ciclovia é ser PT".
São essas viradas que São Paulo dá. Do meio do caos e do fundamentalismo, quando tudo parece perdido, avançamos. Quem dera o Brasil não vivesse de espasmos de melhorias, mas de um poder público disposto a fazer o melhor.

Afonso Lima

quinta-feira, agosto 13, 2015

A peste

ao poeta nada de alma
nada de canto, lua ou amor em pranto
ao poeta a rocha e a onda sedenta
que haja outra lei da que se ensina

gerente da vida
em nome dos seres em séculos vindouros
ao poeta o rude não
o tempo é numérico, o carbono serpenteia
o vento é amplo, o plano ordena
que haja outra lei, da pedra antiga

outra razão, que essa fulmina
fogo e o mar que traga a cidade
multidões em delírio, correm pela noite
onda que abraça, bela luz da manhã
que haja outra lei que regenera


Afonso Lima

quarta-feira, agosto 12, 2015

metafísica

no seu tempo novidade
era não pensar em nada
não saber, não ter mensagem
fechar os olhos, viver a viagem
sentido não quer dizer nada!

pensar é claridade
mas, poeta, eu vivo em tempos crus
sentido não quer dizer nada
nem árvores, nem flores
ritmo de passagem
imagem, metafísica
ansiedade

sim, viagem de luar e sol
sim, um tempo para o não sabido
sim passagem em labirinto
para que o nada não se organize
sim, mensagem talvez e abismo
depois de ter um mistério
passagem por sol e luar

Afonso Lima

quinta-feira, agosto 06, 2015

Brasil

Brasil o aço e o vidro Brasil a escuridão da qual algo emerge Brasil cordial perseguição Brasil um não sem freio Brasil um cão medonho Brasil um muro sem furo Brasil a lei implacável Brasil o preço do atraso Brasil o mato que cresce Brasil o mofo do trono Brasil a teia da aranha Brasil o choro e a cana Brasil um tapa da lei Brasil prata herdada do rei Brasil a senzala da casa Brasil o duro domingo Brasil o parque de pedra Brasil o trem que não vem Brasil o crime perfeito Brasil floresta de vultos Brasil branco no preto Brasil o mato apressado Brasil capitão do ato Brasil a mão não estendida Brasil a vida de mágoa Brasil a guerra na garganta Brasil a lança afiada Brasil a luta manchada Brasil a faca enterrada Brasil é a lama é a lama 

Afonso Lima

dancemos

o monge trovador da Galiza
vendo as três amigas
já grita: bonitas as três
libres e iguais en dignidade
nada fazer
sob as frolidas irmãs
se ao deus bom sabem amar
venham dançar, dançar

as três belas amigas
ao monge trovador da Galiza
já cantam: poeta do rei
razón e conciencia temos
sob as frolidas irmãs fiquemos
se ao deus bom sabes amar
sem nada fazer nos faça
cantar, cantar

o monge trovador da Galiza
amando as três amigas
já grita: embaixo dos ramos frolidos
riqueza nos cerca
se souberem amar amigo
venham dançar
à alegria da natureza
amar, amar, amar

Afonso Lima

palintonos harmoniê

O frio inverno se aproxima
uma ninfa à beira do lago
a alma congela, nuvens cinzentas
somente batalhas, gritos e metal implacável

Eu venho em nome das sibilas
da Senhora das Serpentes
da raposa da China, terra negra
de dentro da matéria brota um espaço
um novo começo, o líquido

Os astros que a Necessidade ordena
os humanos que em fogo se unem
sabemos e não sabemos, sombras do que ordena
investiguemos as opiniões primeiras
espíritos ancestrais, da mata o movimento
a casca dura e a alma do enigma

Afonso Lima

terça-feira, agosto 04, 2015

eu te amo sp

Um ser livre no mundo reprimido
Folhas verdes balançam no alto da árvore
Respirar
Pensamentos nunca pensados
Abrir um buraco
Achados e perdidos de palavras
neste espelho mostro
como você parece em meu pensamento
E tudo volta ao primitivo silêncio múltiplo

A música nos salva
em são paulo
alguém toca o bandolim que toca tanto em mim
é maroto caminhar no MASP e acreditar que aqui é lindo
um raio de luz, batuque, amar o mosaico aquarelado
fitas coloridas
metamorfoses
em silêncio, no escuro outro som
adormecer e acordar no sonho

porque nasce ao lado do muro um futuro
dança africana acordar com bentivis
cores russas resiste recebe e transmite
cabeça na grama e metas de beleza
caem flores e um pensar verde-vida

silêncio

o meu pai nasceu livre e fundei um império
o seu pai nasceu escravo e você observa meu café
eles acham que a vida é uma mercadoria
como qualquer outra todos contra todos
são paulo é festa e renasce e transforma
pastel de feira encontros sushis

o céu

O som sem sentido nos salva
em são paulo
e os seres se unem no último minuto e a vida vence
deitar na escuridão leve pluma estrelas
lógica outra impossível desbunde mergulhar
procurar o poema eu que sou tantos
em são paulo o cômico o concreto vermelho

silêncio

malandragem paulistana eu sinto
na palmeira selvagem são joão
os industriais apoiavam o fascismo pense nisso
mas as moedas fenícias que criaram as línguas
até a Guerra Fria tinha uma magia (acordo) o coro nos consola
under o rio que corre a ninfa trans
lirismo barroco no mar agitado e raios

o céu

eu quero parar um pouco e lembrar e saber por quê
moda de viola ver por tua linguagem
sim são paulo oculta de zen e mãe terra índios
desfazer os destruidores palavras-flechas

o corpo

ninja no nada alma em trovoada navio desgovernado
florescer a lei que seja seiva e afeto tão lúcido
controlar a máquina de caos e mais e mais
recuar refletir voltar pelo outro caminho
a flauta nos salva em são paulo
polifonia um lago sereno um sol que esteve no começo

a música

caminhar lentamente serenidade ar: vazio
árvores em frenesi no livro um país longínquo
nada é eterno certo nada tinha de ser assim
o ser humano erra só o que dá prazer é bem
rimas de resistência na bela são paulo
poetas do punk com maracas discos de vinil
em são paulo a bela a pólis das plumagens coloridas
a música nos salva em negra primavera
eu escrevo brasileiro olho e seu olho me olha
estamos na terra a terra germina
e tudo volta ao primitivo barulho único

Afonso Lima

domingo, julho 26, 2015

príncipe

será que você encara
o agora que acontece
será que a gente aguenta
isso que deu de
brotar brotar brotar

(se você mentir eu minto
se você contar um conto
se você topar ao topo)

noite de rosas, delírio no fundo
isso que a gente não sabe
de silêncio de mar isso que traga
a paz de ovelhas e chamas na curva de lua

(se eu deixar acredito
se eu sentir transgrido
se eu pegar sua mão viro
príncipe)

verdade de girassóis sem pudor
o mundo pra desvendar
e sem lei felicidade tamanha
será que você encara
voar voar voar

Afonso Lima

a maçã

Praça extinta, aço em caixa
uma mulher pinta sua grama de verde
porque falta água
africanos queimam plástico
que é mais barato
ser feliz é o alvo
vende-se paris

a escola precisa de reforma
vende-se consciência
trabalhos de coca-cola
ser alguém é o alvo
vende-se paris

o mosteiro feito de barro
uma corrente para os carros
se quero vender meu trajeto
ninguém me perguntou

no cairo o verde da praça
também recebeu ofertas
três diabos, sentiu-se pobre
um quase moderno

uma linda manhã
de compras em São Paulo
o escritório vomitou concreto
flores que nunca morrem
quero dar um tempo
quero olhar o horizonte
a maçã para a mais bela
vai gerar a guerra


Afonso Lima

sábado, julho 25, 2015

trilha

nem um azulmetálico para barco
nem uma chuva pesada que céu não segura
o coral a onda o sal pedaço de rocha branca
não: pente solto tenho para poesia

e um mar: talvez vento nem uma tarde
montanha perdida nem pensar perdido: o poste
a concha e a espuma, os bichos o barco
não:

são os chinelos e os teus olhos escuros tão escuros
são os pedaços de palavras em novos rumos
são cantigas escondidas em gavetas de fantasia
feitiçarias inglesas e macumbas teóricas na minha alma invertida
de fronteira europeia e serra mestiça: nem espelho azul
de amarelo descendo enquanto a mente se ilimita
tenho para poesia: um olhar

Afonso Lima

vida animada: um poema de amor

Eu penso sempre nessa
nossa prosa
complicada
que não dá mais

Você me escalava a varanda
enquanto hoje eu acho
que tanto faz

Não sabemos o que é
a nossa aposta
não tem resposta
pra onde mais?

Porque o mundo é de ferro
a treva tanta
de você eu quero
um pouco de paz

[vida de borboletas animadas na marina
também temos nossos segredos
que a verdade é dita pela louca poesia
nada se confirma do que seria dado coisa pura
na simplicidade reta eu ponho desafio de relva o simples livre
boleros de feras na ilha da fantasia]

se você me achar
fica um a um
minha insensatez
só um lugar comum

Você ia até me
dar o Taj Mahal
escrevendo torto
o poema vai mal

Vem me encontrar
em lugar nenhum
era uma vez
a gente era um

Não é só você
eu perdi algo em mim
eu quero o mundo
essa novela é ruim

Afonso Lima

o som de efemérides

Uma obra de metrô descobriu esqueletos
Uma cidade inteira dorme sob efeito de gases tóxicos
Penso nas casinhas antigas ameaçadas por novo cimento
Um enxame de palavras, bacantes anêmicas sentadas à beira do rio escuro
Quem me diz que o concreto é já feito também lança a sorte
Alguém me diz que não precisa do passado e só o futuro lhe interessa

Efemérides
um pouco de folhas caindo sobre mim
caminho pelo bosque de repente
a folhagem ganha um sol novo
um dedo-fruto brota do tronco
o tronco truncado de uma árvore
e o lago coberto de leves folhas

libertar o pássaro-mundo de sua gaiola
os demônios da vingança, a lua banhada na fonte
a água enamorada de Orfeu, em tempos de planejamento
discurso oficial dispersado minha inteligência universal escuta mago
o eu não se impõe
surge
treino um olhar capaz de duvidar
é o mesmo para mim
por onde hei de começar
o mesmo é ser e pensar
tenho um bom coração
mas isso não dá poesia

Afonso Lima


quinta-feira, julho 23, 2015

amor

amor, palavra tão dura
que rima com feijão e oco
amor palavra estranha
coisa suja como massa de pão
amor, coisa de televisão juntos
amor, um passeio na praça
ou quase, um dia de tempestade
amor, briga pelo ar-condicionado
toalha chuveiro e sabonete
arrumar os lençóis
amor, cachorro pra rua
e lavar os pratos, a alma
amor, não entender
favor enviar feedback
o verde, comprar artesanato
amor, nunca verdade
amor, nunca entender
amor, seguir mar adentro
amor, som estranho
amor, olhar pela janela
amor, não resolvido


Afonso Lima


sexta-feira, julho 17, 2015

Costela

Um dia a bela Eva estava dormindo
em algum gramado florido
E o Três-Pessoas pensou: e se daquela costela...
Ou ainda o Zeus junta-nuvens
cravando as garras no peito dos mortais
pediu a Hefestus terra e água para se abraçar
desgraça das mulheres-come pão
tirou o homem do cântaro a tampa e
fatal busca
buraco negro
amor incerto
sorriso incoerente
flor imprevisível

Afonso Lima

quinta-feira, julho 16, 2015

sem bossa

montanha rio serra
onda pedras praias desertas
sol sinatra serenata
não vai ter
neve luminosa verdura
da janela animais espertos áspera água fria
não vai ter
verão briga de papagaios bossa nova pássaros no swing
riscos de branco no céu luz na folha lobo mau
não vai ter
a acrópole espalhou a barbárie
falta melodia o progresso
o sol cansado se esconde em cinza surdo
bicho fora do tom
montanha rio serra sertão
uivo lua branca samba exportação
onda pedras praias desertas
e nossas pegadas
outros jovens amores
não vai ter

Afonso Lima

quarta-feira, julho 15, 2015

Ode à literatura

A puta
(mais um dia
o tambor é meu pastor
pensar pela pele
sinto cheiro de mar
casaco, boné e guarda-chuva
e o poema começa)

A puta é aquela que acarinha do samurai com olhos de berlim ouve o coração
a peruinha da Paulista o nordestino organiza o cimento e entra
na máquina de desaparecer mas pra puta mágica perfumada não escapa nada
na noite de são joão o tâmisa tomou alguma coisa e virou
tietê
coluna que um vento dobra como frágil flor
fugir da esquadria o metro que arrisca

horrible desires
horrible dreams with your eyes
there is song you and me
the sailor´s home is the sea

a moça sentada no banco um todo dia para ganhar seu pastel
alegria alegria de no mangue na horta urbana alguma rima o som do mar de coral já sem golfinho
não é apenas o lírio que dá lira mas o bêbado da esquina o faminto

o sangue do teen que deu triunfo da vida o suor do digitador para tirar a palavra da âncora
é rambô que sambô sentado no banco a literatura não é só altura as palavras formam uma banda
só a tímida cortesã pode por em coro pilantra e pensamento
carta solitária
sono de rua
um pouco de krisna e
outro de rio
libertinagem de sons e tornar confuso o mundo a bobagem que derruba o cimento calculado
deve haver um sentido em tudo por enquanto quero malandragem na Augusta
a puta com caderno de notas registra a dura da polícia ô meu brazil
(tudo vale se no vale a alma se no fim do dia olha a lua ouve um blues e pitadas de oriente)
pedra enluarada pelo novo prefeito platão é gostosão mas meu cafetão é o ritmo
últimas notícias da palavra enfeitiçada pela noite
janela
clarão de esperança
uma garça ali no lago
na orgia da mata nosso elmo oco o passado inacabado aqui se mistura
nossas catacumbas são o metrô e o bicho que sai do amor
acolhe a solidão e a gente descobre uma manhã escondida
muito prejuízo estando tão certo disso e perigo eu por outro lado converso com reis e restos de resistência
eu quero tirar as coisas dentro fora do suporto lugar
a capa do jornal me faz mal sem paciência para pastor
a puta é quem junta
o homem e seus sinos

No Parque da Luz a puta ensina
baudelaire com os sapatos gastos hippie dos jardins do apocalipse
o tambor é meu pastor mais um dia
beijo de palavras tradição de infância prolongada
e tudo para mim tem seu humor

Afonso Lima



terça-feira, julho 14, 2015

luz

acordei
tenho que aprender
dentro do momento tudo que existe
um brilho os fenômenos mínimos
o amor e a guerra (não tem planos)
bebo a pergunta fingir a lenda e o bosque
eu esqueci de saber (o movimento é meu professor)
tudo é estranho e é a infância
a correnteza (não preciso do amor
para estar apaixonado)
acreditar que existe um mar em algum lugar
ópera da superfície boiam verdes e o cinza
roubar drummond e sentir o sol
a imensa pedra sobre nossas cabeças e a grama na avenida
ousar tolice arcana
um tempo para ser feliz
não sei o que é hoje
me entrego

Afonso Lima

segunda-feira, julho 13, 2015

sabe como é.

Caminhando por algum
                                     sonho
        em
                     busca de um castelo dourado
                                                                    encontro dois orfeus
que
querem
um
relatório
                      , sabe como é. mallarmé
quero aprender como faz
paz quero descansar
justiça quero resistir. o discurso apagou tudo
humilhações eletrônicas. uma moedinha para eles
é meu passo
meu amor
minha alegria. uma moedinha
lutar
      contra
                não
                      a bomba (só)
mas o cálculo, a lei, a teoria
o o l h a r 
a mente estreita, a sempre tola satisfação
lutar com unhas e números
cidade à margem da sociedade um silêncio
o século não foi eleito
esconderam o sangue em
favelas
           em ódio
                         frio escura noite
os massacres não ajudaram
é confuso o caminho.
justiça
quero entender tanta gente esquecida pobreza tanta ferida aberta o escuro
que tudo paralisa
quero querer, rambô, povo em paz cobertor novo
arroz e flor na janela. compromisso com a verdade
mil mulheres e homens deitados de branco na grama
um índio estudando e fraternidade entre negros-brancos e brancos-negros
não repressão policial e regime colonial que restam
paz
para o menino armado aquele preso político a cabeça branca
aquele sem terra aquela mulher triste na calçada
coragem e fé penetrando
no mar de histórias, puro olhar e alguma
sabedoria
uma paz no chão do dia
as palavras e as coisas sem violência
no labirinto da lacuna
paz na rua e no nascer do dia
justiça

Afonso Lima

trans

titã de flor no cabelo/ diva fabricada
alinhagem de ferro/ não sabe o ser e não-ser
vingança é tua risada/ lady abraça teu amante
         (o gato preto lento
         mensageiro do outro mundo
         sandália de ninfa no fruto em glória
         a onda a cantar, tapete de flor
         ofélia ofegante nos braços de seu homem
         mostra no espelho a dor de um nome
         algema, terreno, mergulho total no inverno)
árvores, animais e átomos/ a tua dança negra abençoa
brasil jeca acha uma brecha/ mãe devoradora
(quer ser nu iork
e não controla o choque)
abre ala para a nova ela
     

Afonso Lima

oculto

estou no negócio da ambiguidade
secos e molhados de metáfora
torcer tempo, abrir espaço
não tenho compromisso
com o lirismo nem velha forma
de pensar eu quero fera
tudo pode estou vendendo
mar e inútil vento
folha, pedra de rio, lágrima
prosa do asfalto falada pelo sonho
(meu patrimônio é a dor arquivada
e a rima censurada da realidade
ricarda huch em flor amarga)
estou no negócio do ritmo do agora
secos e molhados de liberdade
presença de outro eu e tu
fazendo barulho para o punk solitário
avant-garde de pop art rock
que eu tenha coragem dessa viagem
de conhecer minha paixão e o novo da visão
como condutor o Matador-da-Serpente
a moral e bons costumes sem iluminura
em fotos memória e móveis de acajú

Afonso Lima