Páginas

Ajude a manter esse blog

quarta-feira, maio 27, 2015

"Miss Julie" - de Liv Ullmann

Liv Ullmann nos deslumbra desde o início com uma elegância bergmaniana: entramos nesse conto de fadas, que é a vida de uma filha de barão (Jean, o criado, dirá depois que, na infância, era um príncipe apaixonado). A diretora, diferente de Katie Mitchell, que apresentou recentemente sua versão da peça, capta desde o início as contraditórias paixões dos personagens. Kristine, a noiva de Jean, não é uma menina ciumenta e simplória como em Katie Mitchell. Jean tem seu lado decente e tenta agir de acordo com suas obrigações. Que alívio! 

Então isso nos ajuda (esquecendo o problema do "meio") a tentar desvendar o coração da peça. Ficam claros como que dois eixos que organizam o mundo em transição em que se passa (1890). Por um lado a hierarquia (a desigualdade naturalizada, a adequação, códigos arcaicos mas ainda fortes, rachaduras na estrutura); por outro a hereditariedade (o que força as mulheres a não ter herdeiros de outros homens, uma mulher que tenha se entregado à um criado pode voltar a fazê-lo, acabando com o sonho da classe que proteger o passado ou acumular continuamente, e, no fundo, ser superior por imaginar ser; a pureza, estranhamente redesenhada sob o império nazista - nessa Alemanha tão aristocrática). 

As duas forças em oposição são a culpa (dever) e o desejo (ousadia, mudança). Elas jogam para um lado e outro a pessoa - sim, há uma pessoa, ela se examina e se confessa (desejo), se dobra e redobra, presa na teia, nesse imaginário cristão. Surge a "alma", cheia de movimentos, camadas, explosões e viradas de mesa. 

Por exemplo, no começo Julia (que eu sempre imagino tão crente no poder de seu poder que ignora que algo pode dar errado) joga a hierarquia contra a hereditariedade, forçando a situação. Ela é o personagem mais delicado desse jogo: se lermos o texto muito literalmente e com olhos de clichê, logo veremos apenas uma moça menstruada no solstício de verão (o que supostamente deixa as mulheres doidas). Mas, talvez contra sua vontade, Strindberg fez uma das melhores peças feministas. 

O cuidado com a personagem de Kristine é a que mais impressiona nessa versão. Ela mostra entender tudo, julgar, e cada palavra diz o que não é dito. Ela "vai dormir" vendo para onde estamos indo nessa cozinha, acreditando na inércia da realidade imaginária, ela pode ser superior a sua senhora pois "sabe quem é" e faz parte da aristocracia dos eleitos. Ela por fim se revela um elemento decisivo, porque pode estar realmente mergulhada até o pescoço na moral vigente (diz que ela e Jean têm que fugir quando o barão for embora da mansão, dando à entender que não podem fingir que nada aconteceu, ou seja, poderia denunciar a situação por puro amor ao "correto"). 

Não dá pra entender a escolha da diretora por Colin Farrell. Podemos até dizer que o filme é tão bem dirigido que o ator não consegue acabar com ele. A atuação é algo que poderíamos chamar de "antigo shakesperiano", um misto de olhar de cachorrinho com "profundidade teatral" para mostrar raiva. Se o tempo era de vigilância, cada palavra deveria ser filtrada pela dor de se expressar. Ou pela loucura depois da repressão. Por isso seu personagem é o mais prejudicado. Não concordo com Stella Adler que vê Jean como um vilão. É o ressentimento de uma classe inteira que o faz agir e depois desistir de arrumar as coisas. Julia está vinte anos à frente de seu tempo, e ele também. 

Se um clássico é onde podemos sempre encontrar as questões que afligem nossa época, talvez nossa era seja mesmo a do medo (também as manifestações de privilegiados e a propaganda jornalística, que talvez seja medo do rompimento da barreira de classe). Eu nunca havia percebido o quanto essa peça é sobre o pânico. Talvez  houvesse uma saída para Miss Julia, pensamos. Mas parece que houve um caso que inspirou o autor. A própria imaginação da época vivia o rompimento da hierarquia como uma catástrofe. Por outro lado, ao fim, eles foram jogados de um lado para o outro com suas emoções, estão fisicamente exaustos e não podem pensar ou ter esperança. Entram em pânico. 

Bem no fim, volta fortemente a questão da classe. Julia a joga sobre Jean, já completamente fora de questão, e Jean a joga sobre Kristine. Até onde antigo ambiente pode acobertar tudo? Talvez seja uma peça naturalista também nesse sentido: o que somos em nossa nudez, se não somos nossos papéis?

Erich Auerbach comenta, no seu ensaio sobre "la cour e la ville", o quanto, perto do reinado de Luiz XIV, a aristocracia já não tinha um poder real (militar), nem uma função econômica definida, sendo portanto uma classe totalmente deslocada da realidade, vivendo da obrigação nominal de ser privilegiada. Muito disso aparece no comportamento de Julia, leitora de "idílios bucólicos" como os burgueses que vivem de funções decorativas na corte do Rei Sol, que acaba com a oportunidade de sair-se bem fugindo, numa reação furiosa contra a morte de seu pássaro (que provavelmente morreria de qualquer jeito pegando o metrô). 

A hipotese de Liv Ullmann é que Julia vai mais e mais em direção à essa alienação de classe, acabando num monólogo quase louco sobre os três fugirem juntos. Acredito: Jessica Chastain devia ganhar um Oscar. Mas os outros dois personagens também se desumanizaram em direção ao inconsciente coletivo de classe: Kristine agora é um robô sem liberdade, vestindo sua casaca, Jean não pode mais pensar autonomamente, só tem como opção entregar à Julia a navalha. 

Talvez nossa dificuldade em entender o medo deles seja porque não entendemos esse conceito de a parte fazer parte do todo. Sumiu essa "alma em contradição" e somos apenas pessoas sem culpa mergulhadas na maquinaria da banalidade (será que nossos jornais estão ajudando numa sociedade-clichê, de estereótipos, do [medo] imediato, onde cada gueto reafirma sua opinião sem o outro?). E, se a dialética serve para algo, é justamente quando a "incapacidade de enturmar-se" é o pior castigo, o que, segundo crônica de jornal, levaria até ao pensamento crítico (desmoralizado assim). Nosso sistema simbólico produtivo tem como centro o sexo: a burguesia consumidora é que tem tempo de produzir a beleza, o que reforça a desigualdade, o preconceito e gera o desejo de imitação da ostentação, inclusive da hiper-sexualização (crianças no funk). 

Todos tem que ter um sonho (como diz o diretor de um clip de funk ostentação - carro, mulher, ouro) e todos os que não melhoraram deviam ter se esforçado mais. Até a distância crítica é uma "compensação narcísica". A divisão entre profissão (fazer) e intimidade (ser/igualdade cristã) vai desaparecendo: agora a profissão toma todo o comportamento do indivíduo, que não pode mais se distanciar e criticar, ele pensa como empresa e se distrai com consumo de luxo. Vemos um jogo se armando, talvez com a total privatização do ensino, chegaremos ao novo século XIX: classe A faz negócios, outras classes apertam parafuso, a menos que as máquinas façam isso. Talvez a elite financeira perca mais e mais sua "utilidade", etc. 
Mas, como Julia e Jean, sempre haverá quem duvide. 

Afonso Lima

Nenhum comentário: