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sábado, setembro 26, 2015

Pobreza em Plínio Marcos - sobre "O Abajur Lilás" de Tanah Côrrea

Pelo que eu entendi, a geração de 1970 no Brasil, tentando reconstruir um pensamento depois da escuridão que se abateu em 1968, e, isolada dos impulsos vanguardistas que, na França, por meio de Artaud, do surrealismo, de Beckett e de Ionesco leravam a um teatro antidramático, metalinguístico ou lírico, na Inglaterra, através de Beckett por Harold Pinter, a um teatro de estranhamento e da linguagem transformada na tradição realista, e, na Alemanha, através de Brecht, a um teatro de alguma forma (apesar de tudo) aristotélico na evolução, mas com a autonomia de cenas brechtiana, seu antiemocionalismo, que levam finalmente ao antipsicologismo e à ênfase na encenação, e mesmo ao teatro de Heiner Müller, metafórico, descritivo, antiutópico - a geração 70 retoma uma forma dramática mais clássica. 

Portanto, se Plínio Marcos sobreviveu é porque mostra uma realidade selvagem, tem personagens incríveis, conflitos intensos e (apesar de limitações como a repetição de falas a que a unidade de tempo leva) só precisa de uma direção boa o bastante. Pois é. 

A direção é de Tanah Corrêa. O cenário é de uma pobreza assustadora: estantes de compensado das Casas Bahia, paredes de madeira rosinha-claro mal pintadas, uma poltrona vermelha, e tudo isso sem um pingo de ironia, distanciamento, ou seja o que for. Não passa a ameaça que poderia passar, nem a miséria, mas o caricato, sendo um quadro na parede a reprodução mais fiel de um clichê de "arte". Assim, o figurino não transforma esteticamente a pobreza, mas repete a novela, para horror de quem pode ver. Assim, a atriz principal imediatamente causa surpresa por ser uma senhora gordinha, sendo que a personagem é prostituta. Logo entendo a metáfora: ela é uma sósia da presidenta, e chama-se Dilma. Uma pegadinha, ha. Mas sua atuação é exagerada, inacreditável. Com seu segundo figurino ridículo (verde oncinha brilhoso), num cenário cafona, vira um todo Zorra Total. Só supera sua companheira de cena, a bêbada mais caricata que São Paulo já viu. Então entra uma atriz magérrima, boa, mas quase sem voz. Depois, quando Dilma é torturada, a platéia cai na risada quando dizem: "Bate na Dilma, a culpa é da Dilma" ou equivalente.  

Com a plateia às gargalhadas, parece involuntário uma certa empatia pela Dilma quando ela por fim desmaia. O que se pode salvar aqui é o texto. E a atuação engraçada de Nuno Leal Maia, vejam só. Será que os diretores não precisam sonhar que o realismo real já morreu? Assim como a pessoa que odeia a violência na arte porque "é ruim" ou não quer que os gays casem porque "não é natural", estão no convervadorismo de que o que é literal não é ficcional. Como homenagear Plínio assim? Retrato de um Brasil mal educado, que, como Bolsonaro, acha graça do que não gosta e quer que a presidenta saia por "doença ou coisa pior".  

Afonso Lima

sexta-feira, setembro 25, 2015

O fim da cultura

Repórter - Enquanto isso, em Atenas, os gregos estão quebrando os pratos.
(Péricles e Platão vestidos com túnicas).

Péricles
Nós vamos ter de fazer alguns cortes aqui.
Platão
O que você quer dizer?
Péricles
Platão, a economia mudou. Financiar gente para falar do mundos das ideias, francamente...
Platão
Mas e já estou tentando criar produtos novos.
Péricles
Produtos?
Platão
Produtos pedagógicos.
Péricles
?
Platão
Uma teoria sobre as cavernas.
Péricles
Ah, bom. Isso vende. Que tal... Caverna do dragão?
Platão
Não. É sobre as sombras. Pode ser que um dia alguém invente um aparelho para as pessoas ficarem olhando as sombras.
Péricles
Que bobagem, ninguém vai perder tempo com isso. Você sabe: a Grécia está passando por uma crise. O banco Europeu Transmacedônico mandou cortar tudo. Estamos criando um plano de exílio voluntário para filósofos e imigrantes.
Platão
E o Eurípides? Também vão expulsar aquela bicha bêbada?
Péricles
Só ficarão os artistas. E a polícia. Com tanto corte em saúde e educação, vamos precisar de pau e circo.
Platão
Se eu pensasse uma cidade, ia expulsar os artistas. Homero é pura pornografia.
Péricles
Nós vamos dar um jeito neles. Patrocínio.
Platão
Eu vou me matar na frente do Parlamento!
Péricles
Bem, bem. Outra opção é uma limpeza linguística, a criação de produtos mais globalizáveis. Por exemplo: A “Apologia da Coca-Cola por Sócrates”. Ou “O Banquate no Mac Donalds”. Ou “ O Agronegócio da República”.
Platão
Um dia isso tudo vai virar uma teocracia! A Marcha para o Mundo das Ideias. Um símbolo solar, cercado de doze discípulos zodiacais e capaz de ficar três dias no inferno sem se queimar! Nesse dia, os artistas não receberão nenhuma verba! E só a gente vai ter o kit gay.
Péricles
Platão, você nunca pensou em fazer stand up?

Repórter – E agora, um exemplo de como a globalização mudou as pacatas cidades do Nordeste.

Afonso Lima 

segunda-feira, setembro 21, 2015

ofim

Vamos cortar o orçamento
Vamos cortar o orçamento no bairro sujo e feio
Vamos cortar o orçamento do coral de senhoras machucadas pelo tempo
o teatro de mulheres enrugadas e homens que vieram comendo poeira no pau-de-arara e não podem se defender.
Vamos cortar o teatro que apresentam para os netos depois de limpar, passar, construir paredes por séculos
Vamos cortar o orçamento da senhora curvada que conta sua história da senhora enfeitada de batom vermelho da senhora que usa óculos amarelo e tocava piano mas tem tendinite
o senhor de pele escura que canta na rádio e formou um grupo de música caipira
vamos acabar com essa festa essa bobagem no pátio da escola esse luxo
o bairro sujo o lixo e o leito
eles não podem se defender

Afonso Lima

sábado, setembro 19, 2015

A fábrica

- Onde o senhor vai, você diz. E meus direitos?
- É o novo cadastro.
- Faz anos que cruzo aqui.
- As coisa mudam. Qual seu nome de registro?
- Eu já lhe disse que eu perdi.
- Como assim?
- A argola não era tão boa.
- Ah. A desculpa de sempre.
- Olha, meu pai era líder de um bando histórico chamado "Noites Brancas". Eles viraram até filme.
- E eu com isso. O senhor está cruzando uma fronteira internacional. Somente os pássaros nascidos aqui tem cidadania.
- Mas eu sou um animal cosmopolita.
- Eu espero que o senhor compreenda. Se não, terá de ser recolhido. Essas são as cabeças dos pássaros rebeldes.
- Eu não posso voltar. Está frio lá embaixo.
- São as regras.
- Mas quem é seu superior? Quem criou isso tudo?
- Eu sou um pássaro mecânico. Fui criado para responder sempre a mesma coisa.
- Ok, então. Vou ver se consigo lidar com a neve.
- Se o senhor quiser, pode ficar na fábrica abandonada radiotiva que existe aqui em baixo. Alguns ovos nascem com duas cabeças, mas fazer o quê? São os novos tempos.

Afonso Lima

Uma viagem

No aeroporto, os aviões não decolam. Cansada. A mulher fantasma.
- Não adianta. A cidade está dominada pelos rebeldes, é perigoso. Não poderia levar seus filhos.
Machucada. Havia pedido ao marido. Hospital. "Você vai morrer aqui comigo".
Seu eu ia se apagando, imagens de como andava com joias pela rua, de como ouvira Queen na sua terra. A sogra fantasma morrendo longe de casa.
- Como uma irmã. Você vai se ver comigo, disse o cunhado. Seus filhos são seus, sua mulher não.
Em casa, perdeu a fala. Ameaças. A casa apedrejada. As bombas. As filas para receber comida. Os que se lançavam no mar.
Precisava sair.
- Eu sei como você a maltratou, disse o profeta. Não seja maior que Deus.
No aeroporto, os aviões não decolam.
- Eles decolam da fronteira.
Dentro do avião, pensou nos que foram mortos por serem da religião do governo. Dorme.

Afonso Lima

rosto

- Ainda não consigo ver bem seu rosto. Você está numa mesa de bar.
O outro não responde. Ainda não tem um olhar.
- Você tem barba. Você fuma um cigarro. Passa uma criança com um balão. De onde você vem?
- Eu trabalho com túmulos.
- Que tipo de trabalho? Os cemitérios são cheios de pássaros? Você coloca as lápides? Você transfere os cadáveres?
- Eu fui educado naquela escola. A escola dos mortos. Muitos de nós compartilhavam os mesmos ideias. Muitos de nós achavam que eles eram culpados, culpados pelo capitalismo financeiro e pela crise. Nós não éramos apenas vítimas. Os colegas me ensinaram a tirar arte da pedra. Foi bom. Tínhamos muito trabalho.
- Olho para você. Por que ainda não vejo seu rosto?

Afonso Lima

Mudança

- Amiga, eu te falei. Tem que ir na casa de dia.
- Agora já era. Estou de mudança de novo.
- Ver se tem claridade. Tudo cinzento, em plena manhã.
- Agora já era.
- Só não entendo... Não dava pra ser mais perto?
- A terra já não dá pra mim.
- Mas, e de noite? É seguro?
- Me garantiram que sim.
- E nos dias de tempestade?
- Tá caro demais.
 - Caro. Um corpo precisa ocupar um espaço.
- Estão em promoção. As nuvens. Lançamento.
- Ok. Deve ser bonito de ver os pássaros.
Um dia, que tal, me visitar? Amiga.
- Claro. Eu tenho medo de altura.

Afonso Lima

No bar

- Mais um uísque?
O homem levanta a mão branca. As paredes têm um papel de parede desmaiado. As cadeiras resistem em carvalho centenário.
- Há trinta anos vocês eram jovens soldados. Jovens soldados em chamas e eu os acolhia atrás desse balcão.
Alguém pede amendoim.
- Quem diria? Quem diria?
Eles começam a cantar um hino. Um velho corretor de seguros, desmemoriado, pede um brinde para ela.
- Eu sinto pena de vocês. Cabelos brilhantes. Relógios de prata. Até botas envernizadas com cuidado. Que cruel. Tudo coberto dessa poeira cinzenta. Veja, as árvores ficam brancas e depois ficam vermelhas. Mas vocês. Não pensem que me esqueço. Não pensem que deixarei vocês na mão. Olhem. A lua está chegando. Ele virá. Vamos dançar. Vamos dançar e aguardar.

Afonso Lima

A aldeia

- Mas quem é o senhor? Não pode fumar nesta casa. Por que usa esse casaco grosso?
Ele parecia não se importar.
- Então quer ouvir nossa história?
O primeira ministro aprovou a lei de expulsão em massa.
- Voltamos a viver sem água encanada, diz a mulher. A aldeia é onde mais se sofre.
Ela tira a filha da escola. A menina não aguenta mais.
Os camisas negras fazem patrulha ao redor das casas. À noite, não se atrevem a sair, armas apontadas de cima da colina.
- Por causa de alguns legumes. Por causa de um carneiro. Por causa da garotinha que o carro atingiu e do motorista assassinado.
Uma casa é incendiada. Pai e filho fogem.
- Os dois foram abatidos enquanto corriam. Eles foram abatidos como animais.

O estranho enche o cachimbo. Cai a tarde.

Afonso Lima

Yellow Hat

Pierot, the bird, was the most insane bird in the forest.
He saw - in the very first cold morning of the winter, the girl, the girl walking in the mud.
I´m going there, he could listen she saying, nothing you do can change it - she said to her mother.
The little shy girl, with her yellow hat, had discovered a group of drunk, annoying and foreigner men. They had good voices and played music, they made people pay for some stories.
Cause the girl discovered what she was in that place. They said she could sing. Sing in the stage as a girl.
But Wolf was there.
He said: Well, why do you lost your time with things like that. Why don´t you look for the seeds, and make the bread, why don´t you care about the babies and drive our cart?
She was sad. See said: I believe I need a drink. He said he could show her new things in a pub.
-
Pierot was angry. He flies over her hat, he screamed and looked as a monster to Wolf.
He said: You need new words. You need a world with more questions.
Of course, nobody could understand it. But she stopped. And she went by the other way, the long way.
Grandma.
Pearls.
White dresses of white lace.
Musty smell.
Some smell of urine.
The priest said they had no more money. They had no more money, and the church was being destroyed, to create a new parking lot for the new waggons.
And the big hall where the plays used to be played, well the new place is much more small.
Grandma organized a movement. She let him dresses the white dresses.
-
The bird - once Pierot was singing in the third tree besides the red house - had listened too mummy saying to Wolf: Can you believe the dresses It dresses? ("It" has become her new nickname to mummy). The books it read? It can stay in the dark playing with dolls.
I said to her: Can´t you see what you have between your legs?
Become pretty, there is one way, and the other people are ugly, fat and deserve no respect.
Wolf said: I will convince her going hunting with me.
And so, Wolf - always fast - arrived with the Priest and the Hunter. They said Grandma was too old and should go to a sanitorium.
But she had a big mouth, she disagreed. They killed her and put her hearth in a vase.
When Yellow Hat arrived, she was not there.
Wolf said: You could be a cricket player. She could be a surveyor. You could open people´s bodies with nice knifes in places full of people in white and cloroformio.
Concrete things. Useful things.
This ridiculous clothes. This ridiculous hat.
It´s not working they said. She need a lesson.
Now. Look the blood in your legs.
But Pierot flies away calling the drunk actors he had saw in the way.
They saw the blood in the priest´s cassock.
They said: You must be strong. All you have is yourself.
There was a fight. Knifes and three men under the tree.
They took her to a new life.

Afonso Lima

sexta-feira, setembro 18, 2015

mar

No alto do monte, a torre.
- Mas o que o senhor faz aqui?
Silêncio.
- O que um homem como o senhor faz aqui?
Silêncio.
- Está rindo de nós, não é? Rindo de toda a humanidade. Está rindo dos equipamentos eletrônicos, carros brilhantes e câmeras de segurança, não é?
Silêncio.
- Está sorrateiramente rindo das risadas na cozinha, das facas no restaurante e dos dias ensolarados na praia?
O homem deixa o gato subir no seu ombro.
- São vocês. São pessoas como vocês que me deixam enfurecida. Nem as guerras sangrentas, nem as mães com filhos no colo, nem mesmo a cidade queimando em cinza lhe desperta piedade.
O mar escurece e sobe e uma lua branca domina o céu.

Afonso Lima

domingo, setembro 13, 2015

Perigo

Eles o levaram para trás do muro, então.
Não exatamente.
"Não exatamente".
Não exatamente.
Ele deitou no chão.
Podemos dizer que sim.
Ele levantou as mãos. Ele deitou no chão.
Antes, ele tirou a camisa.
Ele deitou no chão. E depois sacou uma arma.
Impossível saber. Foi tudo muito rápido.
Ele se escondeu atrás do carro. Saiu com as mãos pra cima. Deitou, sacou uma arma e se escondeu atrás do muro.
Mais ou menos.
E apareceu morto.
Ele resistiu.
Ele resistiu.
Não faz falta.
Estou perdendo meu tempo, não é?
Ele é um desses perigos pra sociedade.
Eu acho que pior é quem trai os amigos.
Como?
O que eu faço com vocês? Nunca ouviram sobre câmeras de segurança?
Elas não pegam atrás do muro.
Ah! É mesmo. Legal. Apareceu uma arma ao lado. A arma que vemos um otário pegar no carro. Ao lado de um homem sem camisa. Morto. Vocês me dão dor de cabeça.
O senhor quer uma aspirina?

Afonso Lima

quinta-feira, setembro 10, 2015

A cidade

A cidade era um monte de ruínas. Era perigoso sair para buscar comida. As crianças se atreviam a brincar entre escombros, mas corriam para casa ao avistarem algum estranho ou ouvirem aviões. No cair da tarde, o céu violeta, um batalhão chega para passar a noite. Já ninguém se atreve a fazer muitas perguntas. Pediram água, o prefeito fez chegar no acampamento tinas de água, que gasolina já não havia. Linguiças feias. Luz, há muito, durava quatro horas por dia. O medo é como uma fina poeira na noite seca. O chefe tinha marcas nos dois pulsos. Quiseram a presença de músicos. Os homens foram trazidos na praça, o velho tocador de flauta, os dois meninos do tambor, o cantor. Os oficiais batiam os pés discretamente, depois dançaram como crianças. Aos poucos algumas almas arriscaram se aproximar. As mulheres, com medo, olhavam por detrás das frestas, das colunas, na escuridão. A lua estava alaranjada, grande. O cantor lembrou de uma mulher que se apaixonou por um soldado, que foi embora e a deixou sufocando de tristeza. Um dia, ela soube que ele casara. Os homens fizeram um momento de silêncio. Ouviu-se o vento nas montanhas. 

Afonso Lima

Na estação

A chuva ficou mais forte agora. O frio. Ao redor da universidade, algumas ruas escuras. O tumulto das bancas de comida. A menina senta no degrau, tinha perdido seu boné, não queria molhar a cabeça. O pai podia ficar furioso se voltasse com os cicletes. Cuidado, a mulher disse quando o marido foi sair do prédio. Invadiram tudo por aqui, abriu o guarda-chuva para caminhar até o carro. Ela quis se aproximar para oferecer um chiclete, um dos sapatos, furado, deixou entrar a água. Ela se encolheu na porta. 

Afonso Lima

Hope

there is hope
when I fight against speech explaining me the world
there is hope
when I do not accept what they tell me, that nothing could change
here is hope
I refuse to accept that cruelty is the essence of the world
a new day always can be created
the real is dispersed, but I have hypotheses about it
no. say no
cause we care
there is hope

Afonso Lima

quarta-feira, setembro 09, 2015

Elizabete Costa Spiel


Não acho divertido. Não. A chuva começou às oito horas da manhã, ao meio dia tinha virado uma tempestade, um furacão às três da tarde. A luz caiu. Eu procurei uma vela, a luz ia sumindo. Sem lua. A piscina, uma mancha negra lá embaixo. A vista do vale era uma mancha negra. Eu andava no escuro. Meu celular estava sem bateria, eu não podia ler, não podia ouvir música, não podia foder ninguém. Pensei em bater no vizinho, desisti em um segundo. A noite se aproximava. E eu achei que tinha dado certo, quando casei com o cara certo. Ele me pagou um uísque, me comprou um carro e me levou para sua casa na serra. Ontem, eu tinha televisão. Eu me lembrei das coisas estranhas da minha vida. Uma longa vida fascinante com todo tipo de coisas e pessoas estranhas. Meu personagem podia falar assim. Uma mãe pobre e doida, que deixava a menina com uma avó doida e surda para dançar por aí. Eles dançam no escuro. Eu nunca entendi o uísque, ela diz. Ontem, morreram algumas pessoas, ele diz. Foram mais que algumas pessoas, na realidade, ela diz. Eu digo para ele, isso é pouco. Poder falar. Só isso não basta. Desde que fiquem no seu lugar, ele diz. Meu trabalho exige muito de mim, ele diz. Que vençam os melhores, ele diz. O governo disse que não ia pagar salários. Ele tem outros planos. Os policiais não trabalham de graça. Meu personagem podia falar assim. Um pai morto muito cedo. A mãe chorou pouco e colocou flores durante três anos, depois cansou. Ele, eu conheci onde eu trabalhava. Eles dançaram no escuro. Pensando bem. Não posso escrever no escuro. Os policiais não trabalham de graça, eu digo. Agora, nós, nós sabemos. Ele tem outros planos. Ele precisa da crise. Então, começaram as mortes. Ontem, eu tinha televisão. Meu personagem podia falar assim. Nos demos bem, eu e ela. Eu nunca errava os talheres. Compramos juntas bolsas com pérolas. Eu nunca fiz as perguntas erradas, a mãe dele nunca fez as perguntas erradas, somos felizes. A noite chegou. Uma sensação estranha. Experimento cobrir a cabeça com o edredom. Ontem, morreram algumas pessoas. Foram mais que algumas pessoas, na realidade. Não é tão grave, ele diz. Ele está dirigindo por aí e não há um único policial na cidade. A vida sempre dá um jeito, ele diz. Talvez eu não merecesse, minha mãe diz. Experimento alongar, dançar na escuridão. Experimento comer algo no escuro. Experimento respirar fundo. Olho lá fora. Não vejo nada. Agora eu tenho que ficar aqui sozinha, pensei, sozinha em minha cama numa escuridão completa no mundo. Ainda uma tempestade. Todo tipo de coisas e pessoas estranhas. Uma longa vida fascinante. 

Afonso Lima

segunda-feira, setembro 07, 2015

Max

Eu cheguei em casa cansado. Eu botei os meninos no colo e disse: Me façam ter orgulho, crianças. Eu derramo o meu suor para por comida na mesa de vocês. E vocês me ouviram, sim, olha só. Eu sempre disse, eles são perigosos. Eles vão nos perseguir. Vocês agora são a lei. Vigiam eles. Sempre nos ajudaram, os da lei. Se algo acontecia, mandavam um esquadrão de noite que executava meia dúzia. Para alertar. Guerras de quadrilha. Se pensava. Começa com a colheita de provas. Depois, os nomes de testemunhas no claro dia. Juradas de morte. Anuladas nos tribunais superiores. A nova ordem exige profissionalismo. São três equipes. A primeira, executa. A segunda, esconde as provas. A terceira, registra o crime. Você se foi, Max. Você era o melhor, Max. Você nos traiu Maxwell dos Santos. Investigava grupos de extermínio formados por sua unidade. Eu, que te botei no colo, estou triste com você, Max. 

Afonso Lima

quinta-feira, setembro 03, 2015

Não há bombas

- Não estamos numa guerra, não é mesmo?
- Não.
- É um mundo livre, não?
- Um mundo livre, sim.
- Não estamos numa guerra.
- Não. São apenas velhos, negros, velhos negros sem oportunidade que vagam como sonâmbulos e comem arroz com as mãos.
- Não há cadáveres de crianças, estilhaços, pedaços de bombas ou ruínas.
- São apenas velhos, velhos sujos que moram embaixo de cobertores, ou papelão, que se encolhem nas calçadas em cima de papelão.
- Não há crianças mortas na praia, mutilados, ruínas ou armas apontadas. Não há bombas.
- São apenas velhos negros sem sapatos, com suas calças sujas, mancando, pedindo comida ou bebendo cachaça, pedindo comida ou bebendo.
- Não há sangue e ruínas, não há refugiados. É uma grande cidade. São prédios brilhantes. São mesmo altos, luminosos, são grandes prédios modernos e brilhantes.
- Pedindo comida. Ou carregando sacos. Ou comendo com as mãos podres restos de lixo. Ou se masturbando na esquina. Ou gritando no meio da rua. Ou catando piolhos. Velhos negros sem ocupação.

Afonso Lima

mensagem

- Nem uma lágrima?
- Não.
- Nada de jornais e televisão?
- Não.
- Nada de gritos como um animal sore álbuns de fotografias?
- Nada disso.
- Nada de berros e socos, "mataram meu filhinho" como nas novelas?
- Não. Já tivemos mortes o suficiente.
- Silêncio? Silêncio completo?
- Completo. Silêncio eterno.
- Ok. Você entendeu. Você é esperta. Você está sintonizada com a coisa toda. Eu sinto muito. Sabe, eu gostaria de sentir mesmo muito. Você poderia denunciar. Você poderia ameaçar a todos nós. Assim é bom. Nada de gritos.

Afonso Lima

quarta-feira, setembro 02, 2015

na rua

o bater grave da máquina começou cedo
o sol frio, algum vento, ainda assim flores como sangue num caminho de pedras
um animal grita sinfonia impecável, dobro a esquina, pelo chão
restos de casa, panos e tralhas, um homem
ele encosta as nádegas na terra, livre em mundo de ninguém
é um bicho, meu Deus, é um bicho

Afonso Lima

haikai

ontem, folhas verdes, agora insetos circulam
três papagaios monitoram o céu apressados
do tronco folha gira e brota e peso de fruto
uns já saem da casca amarela, outros, gordos, cada um tem sua primavera
a ponta do botão é roxa, agora dobram-se
três ametistas sobre pétalas brancas ou azuladas
eu, que parecia só sobre a terra
reverente, vejo passar sol e noite

Afonso Lima

terça-feira, setembro 01, 2015

Escola

"No Brasil, o talento é mal visto. Quem se destaca é perseguido" - sua tia havia dito.
Ele era um menino inteligente. Com 12 anos tinha lido toda a Bíblia da mãe três vezes.
Os outros meninos jogaram seu caderno no vaso sanitário. Seus pais foram chamados.
- O Carlos apresenta problemas de comportamento, disse a diretora. Queremos saber se sofreu abuso, se vocês estão brigando em casa, se tem demonstrado algum sinal de perturbação.
- Meu filho é um dos melhores alunos pelo que sei, disse a mãe.
- Que tipo de problema de comportamento? - perguntou  pai. Acho que ele foi humilhado pelos colegas.
- Seu filho é afeminado. Nunca notaram? Os outros meninos têm medo dele. Um pai veio reclamar. Achamos que precisa de tratamento psiquiátrico.
Carlos ouvia em silêncio e ficou vermelho.
Os pais saíram cabisbaixos. "Precisamos achar um bom médico", disse o pai já dentro do carro.

Afonso Lima