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quarta-feira, agosto 31, 2016

Um Brasil intoxicado pela demagogia

O golpe parlamentar que está ocorrendo no Brasil pode ser visto de diversos ângulos. 
Foi um golpe midiático (que criminalizou a esquerda e destruiu reputações), um golpe judiciário (pela omissão e por um ataque do juiz a um único partido), um golpe parlamentar (mostrando a força do dinheiro para eleger pessoas pouco representativas da sociedade), ou seja, uma usurpação legalista. 
Mas o que mais tem me chamado a atenção é o uso de pequenas verdades para encobrir grandes golpes. Foi fácil achar nos problemas estruturais, nas mesquinharias possíveis (uma reforma num sítio, quando Serra foi acusado de receber R$ 23 milhões), nos erros de política econômica munição para tornar o PT algo como o Stalin dos Trópicos. Tudo que foi feito e não foi feito entrou numa salada geral e legitimou as posturas políticas mais irresponsáveis, porque se sabe que a mídia silencia.

Um dos senadores acusa a presidenta de "destruir a Petrobrás". Uma análise mais cuidadosa diria que o uso de verbas públicas em superfaturamento faz parte do jogo eleitoral brasileiro. O que está sendo usado para entregar o petróleo ao estrangeiro. 
A jurista que defendeu o impeachment (professora da USP) chama por Deus e diz condenar Dilma por "seus netos"; é o "janainismo".

Pessoas com quem tenho falado dizem que "quem aprontou está pagando caro" (eleição indireta?) e "Lula é ladrão de galinha" (onde está a prova?).
A vendedora de livros: "Não foram as pedalas, mas com certeza tem algum crime que ela cometeu" ou "os vândalos estão quebrando lojas".
Clímax com mulher na fila do banco dizendo: "Essa vagabunda líder de quadrilha".
O racionalismo perverso conseguiu apagar a realidade. 
Tudo isso lembra muito os processos de 1961-1968 durante a implementação do estado de exclusão ditatorial. Inclusive com ministros do STF fazendo propaganda antiPT e promotores vendendo seu peixe de que a esquerda é a corrupção. (Um ministro do STF se sentiu intimidado pelos ataques na internet à sua mulher - o cidadão banal comanda).

Em diversos níveis, oculta-se que a oligarquia desistiu do teatro democrático. Oligarquia, sim:

"As pessoas mais ricas no Brasil têm 65,8% do total dos rendimentos isentos -
Os rendimentos desses 71.440 cidadãos atingiram R$ 297,93 bilhões em 2013 – o que dá uma renda per capita de R$ 4,170 milhões por ano."
http://metalurgicos.org.br/noticias/as-pessoas-mais-ricas-no-brasil-tem-658-do-total-dos-rendimentos-isentos/

Oculta-se que nem Lula e nem Dilma fizeram (ou poderia fazer) um novo país, mas tiveram de jogar um jogo pronto: bancos, agronegócio, empreiteiras etc. dominam o Brasil; o presidencialismo de coalizão criou uma corrupção estrutural no poder dado a quem doa para as campanhas. Os formadores de opinião também são uma classe ou diretamente ligada ao mercado imobiliário e financeiro, ou de uma sub-elite empreendedora que se alimenta de um discurso de gueto. A estrutura contaminada é a base de tudo, conforme analisa Céli Pinto (da UFRGS), explicando o poder de Eduardo Cunha, que iniciou o impeachment e comanda muitos políticos "patrocinados":


"O esgotamento das coalizões. Difícil aceitar que a crise na base do governo seja consequência da personalidade da Presidenta da República. Os partidos da coalizão, principalmente quando há uma grande dose de fisiologismo, só se mantém na coalizão a partir de um simples cálculo de custo e benefício. Na medida em que o partido do governo, apresenta-se cada vez mais desunido e corroído, que o governo não tem, ou não quer exercer, poder para livrar os aliados da base dos escândalos de corrupção, que se manter no governo não melhora em nenhum nível as possibilidades eleitorais de qualquer partido; que uma crise econômica diminui a possibilidade de distribuição de verbas, através de emendas e outros instrumentos; que as oposições aparecem como possibilidade viável de um novo acordo de coalizão, a coalizão se esgota. Não há espaço de manobra para garantir qualquer base de apoio."

Só para lembrar, a composição do Congresso:

- mais de 70% de fazendeiros e empresários (da educação, da saúde, industriais, etc) sendo que maioria da população é composta de trabalhadores e camponeses.
- 9% de Mulheres, sendo que as mulheres são mais da metade da população brasileira.
- 8,5% de Negros, sendo que 51% dos brasileiros se auto-declaram negros.
Menos de 3% de Jovens, sendo que os Jovens (de 16 a 35 anos) representam 40% do eleitorado do Brasil.

http://www.plebiscitoconstituinte.org.br/
Como a racionalidade da nação foi se perdendo? Acho que muitas pessoas, como eu, deviam acreditar que em algum canto existiriam forças progressistas. 
Em 2012 tivemos uma prévia: o caso "mensalão" em que a Justiça usa de uma violência sem limites (condena sem provas) contra um partido (enquanto outros crimes de outros partidos parecem isentos de culpa). 
Conforme o jornalista Raimundo Rodrigues Pereira:

"Por que a tese do mensalão é falsa? Porque o desvio dos 73,8 milhões de reais não existe. A acusação disse e o STF acreditou que uma empresa de publicidade de Valério, a DNA, recebeu esse dinheiro do Banco do Brasil (BB) para realizar trabalhos de promoção da venda de cartões de bandeira Visa do banco, ao longo dos anos 2003 e 2004. E haveria provas cabais de que esses trabalhos não foram realizados."
http://www.brasil247.com/pt/247/brasil/83657/A-vertigem-do-Supremo.htm

Um caso recente, já que até delação agora é prova:

Investigado da Lava Jato diz que foi "chantageado e intimidado" pela PF - Ao juiz Sergio Moro, Ramos disse nesta segunda-feira (29) que ouviu dos membros da Polícia Federal que "se não falasse o que o delegado queria ouvir", a sua prisão seria convertida em definitiva. "Fui coagido, chantageado, intimidado ostensivamente de maneira pouco usual. Acima do que aceitável, entendo eu, pelo código de conduta da carreira do servidor", denunciou.
http://jornalggn.com.br/noticia/investigado-da-lava-jato-diz-que-foi-chantageado-e-intimidado-pela-pf

O que vimos (em um ambiente em que a ditadura e o neoliberalismo dos anos 1990 acabaram com a educação pública) foi que a união de uma mídia absolutista com o novo fervor fundamentalista evangélico (que passou a odiar a esquerda por causa dos direitos dos gays e representa a união de todos os mais baixos preconceitos) alienou profundamente as massas. Nossa população é alvo fácil de justiceiros parecidos com os da era fascista. Mesmo que as cotas, o ProUni, o Fies tenham trazido mobilidade social e a internet criado novos nichos de debate.

Florestan Fernandes (nos anos 1960) falava que as massas precisavam adquirir o controle dos processos de mudança social e ter consciência da importância de sua atuação política. A maior parte da nova classe média que ascendeu nos anos Lula não chegou a adquirir essa consciência profunda dos processos, por exemplo, uma percepção de quem ou onde estão os causadores dos problemas pelos quais vão às ruas, seja porque teve uma educação privada de baixa qualidade, seja porque o sistema consumista atual determina o conforto material como sucesso e o sucesso e o fracasso como resultados de ações individuais. A TV diz à toda hora que a ação violenta da polícia contendo resistências é apenas "contra os vândalos", que houve "aparelhamento do estado" (justamente quando ele diminuiu muito), etc. Chocante é como foi simples fazer as consciências: trabalha-se muito, o estudo ainda é caro, os livros são caros, etc...

Aliado a isso surgiu o racionalismo economicista (obrigado Globo News) que permitiu à classe média anular sua consciência aceitando um discurso que, no fundo, diz que a sociedade deve financiar os juros dos títulos da dívida pública e, pela dívida, deixar de investir na vida do cidadão. Como diria Luis Fernando Veríssimo, ironizando os apelos simplistas, se vende a ideia de que um pai deve deixar morrer o filho para saldar sua dívida. 

Uma confusão de slogans baratos - desde "roubo" até "crise" - conseguiu mudar os rumos de uma nação. Os senadores pareciam falar para um aposentado malufista dos anos 1980. Pessoas como Augusto Nunes (que chamou o mesmo Veríssimo de "cachorrinho de madame que virou pitbull de quadrilheiro"), Reinaldo Azevedo (que chama dos blogs independentes de "blogs sujos") e William Waack, que representa tão bem essa arrogância baseada em pseudo-argumentos, são algumas das vozes que transformaram o debate público em moralismo cruzado. E furado. Porque "crime de responsabilidade fiscal" é só mais politicamente correto que tanques. 

São forças que estavam ocultas, mas que ainda mandam no Brasil: parte do exército, advogados patrimonialistas, jornalistas fanáticos, o trabalhador que assiste Jornal Nacional e acredita, a pequena burguesia que "deu certo", não foi afetada pela melhoria dos indicadores sociais e tem o sonho de não pagar imposto, o grande empresariado que quer pagar um salário de fome, a grande mídia que odeia ter de dividir verbas governamentais. Não seria impossível deixar a crise destruir a Dilma, mas a pressa também tem a ver com a necessidade de reformas reacionárias antes da nova eleição.
A classe média parece muito satisfeita porque as empresas em que trabalha estão satisfeitas. O estado, agora, faz parte do seu portfólio. 
Muito disso pareceu o processo de ascensão do nazismo, ele também "legalizado" pela Justiça. O criminalizar da esquerda, como disse a professora Walquíria Leão Rego da UNICAMP. 
Mas, ainda que haja essa situação catastrófica e vergonhosa, o Brasil mudou. Não foi em vão. 

Afonso Lima. 

https://www.youtube.com/watch?v=3gQtYPt1NdY

https://theintercept.com/2016/08/29/interview-dilma-rousseffs-impeachment-trial-nears-an-end-endangering-brazilian-democracy/

terça-feira, agosto 30, 2016

My song

Então, o mundo era uma ilusão
Nossa modernidade trágica
Incendiou Apolo e o indizível
Você não ouve seu próprio tempo

Nenhuma mentira prevalesse
O tempo anula a torre mais alta
Surdo ao tambor e à revolução

Suas palavras não são acolhidas
Sua verdade cai sobre as pedras
Seus sonhos são sua realidade

Um dia chegará de verdade
O tempo anula a torre mais alta
Nossa paixão é tempestade

Então, foi-se o dourado dos dias
Os pratos foram quebrados, o inocente condenado
Você nunca ouviu a voz que o novo anuncia
Agora, o animal acorda e começa a luta

Afonso Lima

terça-feira, agosto 23, 2016

Eternos

Ela observava sua foto na hora da morte. As pessoas haviam começado isso há décadas, lembranças.
Mas ninguém parece ter pensado no que ela pensou. 
Elas assinavam sem ler. 
Nunca gostou de conviver com gente que, na prática, já cumprira seu tempo. 
Ninguém compreendeu quando o dono da maior corporação do mundo desapareceu. 
Imaginava que nem sempre fora assim. Desde que as pessoas passaram a ser ressuscitadas, com certeza, devia ter-se começado a administrar as vidas de forma mais coordenada. 
Almoços de genos do mês podiam reunir bisavós, avós, pais eternos. Assim como era possível cruzar, num dia de folga, com as professoras da pré-escola falecidas, as professoras das mães, o médico que dera vida à sua avó. 
As três grandes corporações que elegiam o conselho do Governo Mundial deram, em dado momento, a cada pessoa uma capsula de sono, uma mesa de trabalho, um coletor de resíduos sólidos e uma mesa de nutrição; planejaram que as pessoas, em sua maioria, acordassem com o nascer do sol, comessem em 20 minutos, digestão de 15 minutos, tempo de sol, trabalho nas mesas até 11h, pausa para nutrição, trabalho até 13h, exercícios programados, pausa para comida, etc. Os remédios desfaziam os sintomas irracionais. 
Ela os estava caçando um a um. 
Ela usara seus conhecimentos como programadora. O homem vivia cercado de detectores de metal e câmeras de segurança, mas ninguém podia prever um inseto robótico que inseria um programa no seu cérebro auxiliar o conduzia para onde ela mandava. 
Queria poder prender os outros dois em cápsulas eternas, repletas de gel ionizado. 
Um dia eles a descobririam. Mas agora, o segundo homem mais importante do mundo ordenara que seus seguranças o deixassem numa praia deserta. 

Afonso Lima

Marcas

Uma noite sombria e tempestuosa. Ele chegou no castelo. 
O contador viera para jantar. Depois, o conde serviu um conhaque. Falaram de negócios. 
- Fico impressionado. As pessoas ainda acham que nada de anormal está acontecendo.
- Acham que a coisa melhorou. 
- Fui comprar um presente numa loja. A vendedora disse, lá pelas tantas, que "roubaram tanto" que as lojas estão vazias. 
-  O sistema informativo está doente. É como um vírus. Fica-se pensando se é apenas má-fé ou se viver numa bolha contaminou a capacidade crítica dos jornalistas.
- Meus avós viveram isso. Os comerciantes tinham medo dos comunistas. Os industriais odiavam as greves. É uma característica fascista a negação de toda a realidade contraditória.
- E você viu ontem a entrevista do ex-ministro? Assemelha-se a um bando de lobos cercando uma ovelha.
- Existe uma contradição completa entre os fatos que descobrimos e o que está rolando nas conversas. Ou seja, implantaram alguma coisa nas mentes.  
O conde abria uma caixa de joias finamente bordada na qual estava o brasão da família. 
- Eu recebi o que tenho como herança, o senhor sabe. Mas, por sorte, nunca fui dominado pelo fogo da ambição. Minha família tem apreço à verdade, já que viveram o terror de uma verdade comum, mas absurda. 
O fogo devorava a lenha e o jazz era uma melodia delicada. 
- Minha esposa contou sobre a entrevista. Ela disse que respondeu bem. 
- Sim, razoavelmente. Mas um homem público nunca pode falar toda a verdade. Uma das perguntas é: "O senhor acha eticamente correta a decisão do ex-presidente de aceitar reformas de construtoras?" O jogo, novamente, com a contradição sistêmica. O único governo que tomou medidas reais para corrigir a desigualdade brutal torna-se o pior e o mais corrupto.
- O papo que se escuta numa fila de banco ou num bar é: "A economia estava uma merda". É uma espécie de encantamento produzido por um demônio. 
- Não acreditava nas colocações. Outra jornalista parece querer evitar a ida da presidenta ao Senado, dizendo que, se é golpe, o golpeado não deveria aparecer... Outro diz que não é golpe porque o Congresso continuará funcionando e haverá eleições.
- Já vivemos momentos em que Senado, Juízes e imprensa afirmavam não ser um golpe. E era.
- Uma repórter começa com a questão: "Levando em conta o caso de corrupção anterior, que parece ter iniciado a antipatia do ex-presidente pelo senhor..."
- Uma condenação sem provas, agora é normal. A pessoa é presa antes do julgamento. Mas como ele se saiu?
- Depois de uma defesa consistente, na qual afirmou que a crise foi a oportunidade da tomada do poder sem as urnas, o mediador não se aguenta e dispara: "e a imensa ladroagem nas estatais?" Será que o jornalista se deixou levar pela própria retórica e acredita que o vexame de um novo governo cheio de acusados é uma saída?
- Existe um sistema político podre. Estamos assistindo um jogo de cena. Não importa mais o fato. O fato demora muito para ser explicado e não cabe na manchete.
- Bem, eu tive um amigo que foi acusado injustamente. Não conhecia bem o sistema e não foi apresentar a defesa. Levou dois anos para provar sua inocência. Ele me disse: "Quando seu nome sai no jornal e todos falam, você pode sofrer violências reais. Quando sua inocência aparece, ninguém pode apagar as marcas da injustiça". 


Afonso Lima



domingo, agosto 21, 2016

O Um

Subitamente, um clarão tomou todo o espaço.
Ele, instintivamente, protegeu os olhos.
Ao abri-los, viu sua mãe no momento de seu nascimento.
Correu pelo espaço, que parecia de uma brancura infinita, mas sombras passavam por ele como imagens em diversas velocidades.
- Eu sou seu filho, que nascerá em breve - disse o rapaz ao seu lado.
- Superamos a velocidade da luz?
- Sua nave chegou ao fim do tempo. Você pode ir para o norte e ver o que acontecerá quando a humanidade incorporar o DNA de certos micro-organismos, como fomos além do gênero, como será sua morte, a vida na Terra IV de Marte, ou para o sul, e ver H.G. Wells assistindo ao cinema pela primeira vez.
- Quero voltar ao tempo.
- Existe uma Torre Prateada no alto da Montanha. O Um é o único que pode reduzir sua percepção.

Afonso Lima




sábado, agosto 20, 2016

A mansão depois do bosque

Fernando estava morando com seus tios e sua avó num condomínio de casas recém construído ao lado de uma antiga mansão, da família Tomasi. O herdeiro vendera parte das suas terras para o novo empreendimento e praticamente não saía de casa. 
O menino havia passado pelo trauma de assistir, do carro de seus tios, o carro no qual estavam seus pais ser parado por assaltantes. Eles foram tirados do veículos e sua mãe foi baleada, permanecendo internada. Seu pai também ficou gravemente perturbado e decidiu isolar-se na casa de campo.
Fernando não deveria sair de dentro dos muros do condomínio, mas subornava o vigia com dois cigarros que roubava da avó. 
Gostava de brincar no pequeno bosque atrás da casa, que fazia a divisão com a mansão Tomasi.
Um dia, observou senhor Tomasi trabalhando no jardim. Parecia estranho. Chegou perto e tentou descobrir o que fazia.  
Sonhou com a casa. Muitos vidros dentro dos quais haviam pedaços de animais. 
No outro dia, decidiu aproximar-se da janela e observar o interior da mansão. A janela tinha uma base de vidros coloridos. Uma cortina de renda. Muitos quadros nas paredes, que pareciam de gente morta. Uma lareira com uma santa em cima. Os móveis eram antigos, pesados. Uma mulher estava sentada numa poltrona de veludo verde, de costas para ele.
Tentou descobrir com o vigia algo sobre o morador da mansão. Todos ali haviam chegado agora e pareciam prontos a partir. Algumas casas haviam sido compradas como investimento e permaneciam fechadas. Outras, pertenciam a pessoas que vinham à negócios poucos dias por semana.
Sua avó percebeu que estava agitado. Pediu aos tios que o levassem a um psicólogo. 
Outra vez ele jurou ter visto uma menina no jardim da casa. Ouviu outra voz. Ela parecia estar conversando com senhor Tomasi. Teve medo e contou a seus tios, mas não contou como havia saído; eles o colocaram de castigo por mentir. 
Normalmente seus tios não deixavam que visse televisão, em especial o jornal. Como havia ficado de castigo, pode ficar com eles na sala depois do jantar. Os jornais relataram o desaparecimento de três crianças nos últimos meses. O governador estava dizendo que não podia pagar os policiais.
Fernando sabia onde estevam. Conseguiu sair de casa antes de amanhecer. Começou a analisar o jardim.
Retornou com medo de ser descoberto logo que o sol despontou.
Eles o levaram a um psicólogo. Ele achou que o menino vira algo estranho.
Sua tia lhe deu de presente um canivete - "Você vai se sentir mais seguro".
Ele voltou ao jardim. O homem estava adubando as rosas. Senhor Tomasi acabou convidando-o para um chocolate.
Ele entrou na casa.
Essa é minha mulher - ele disse, apontando para a poltrona verde. Eu a desenterrei uma semana depois do funeral.
O menino ficou petrificado.
Toca a campainha.


Afonso Lima





sexta-feira, agosto 19, 2016

um livro

ele me diz que só leu dois livros
que os livros vão demorar
que tudo chama e não dá pra parar
eu quero dizer e só digo meio
o que acende teu coração?
no baú da humanidade
retalhos e aviamentos caídos
a concentração abre a porta
é preciso sair
de fora de tudo observo
minha pele quer dizer
alguma coisa impalpável
um mar de azul furioso não visto
cogito
magia de número impensado
queria te dizer que a desmemória
o mundo que se copia
(afirmo no passo recuado
de tudo que sei sem querer
um certo rumo afirmado)
é sombrio
tem o perigo insípido
da morte subindo pelas paredes
como galhos
os tecidos pálidos sem fome
do jardim sintético
do relevo apagado
um tempo sem crise
nega a estação o agora
do chão
que sempre pede outro
fruto
que o que se é se faz
negar o olhar que nega
empoeirando maquinalmente
a memória o pântano
de verdades prontas
para a guerra
bicho livro inclassificável
talvez livros porque
é duro viver sem a lua
a música recria o ar
a destruição avança
daquilo que não renasce
e toda certeza é falsa
que as palavras precisam se libertar
a rosa responde ao cinza sendo rosa
que surpresa um pássaro
com uma gaiola dentro
(abro a janela
e as flores têm seu glamour
de renda matinal)
nego a química e o número
quero repensar a estrutura do universo
mistério

Afonso Lima

quinta-feira, agosto 18, 2016

o mundo sem livros

no meu tempo tão sem amor
a escrita inexistente
caminha pelas ruas

naquele mundo sem dúvida
os sebos e o deslizar da alma
toma o café a escrita inexistente

circula nas livrarias
abre um livro ao sol
detetive de biblioteca

o mesmo tempo que a fez inexistir
por ela clama e a sustenta
letra por letra
no desejo de descobrir-se
outro


Afonso Lima

o valor da vida

Algo em nós se descostura
perfura e não perdoa
algo em nós ferrugem e morde
o valor da vida

algo de verde ascende
o branco da folha
a linha frágil
celebro em negro

a mãe ferida
a mão faminta
a pele seca
o pranto mudo

a lei impune
acostuma o todo
à luta fria
ao desconsolo

limpar o corpo
amassar o pão
cada coisa mínima
o valor da vida

Afonso Lima

segunda-feira, agosto 08, 2016

paz

no meio do caminho
esqueci quem sou
as coisas, eu aperto pause
não quero afirmar nada um momento
minha pátria não tem fronteiras
saúdo a rosa de luxo a rosa japonesa
a rosa caída e morta
analiso o tempo escondo o vento
eu, marcado de Minuano
(cavalo branco da fazenda)
esqueço de querer
parnasiano educado por pedra celebro o pequeno que sou
barco e tão parte desse mar
enquanto os humanos quimicamente alterados
aceleram programas insaciáveis
paz com doidas flores na cabeça venero
panfletos de uma manhã sem galo solitário
2 x gauche
meu sucesso é o prazer
nadador de linhas curvas e poema sujo minha jangada
é lua cheia
minha pátria não tem fronteiras


Afonso Lima



sábado, agosto 06, 2016

Uns mil corações

(AFP)


Alma lavada. A abertura passa uma mensagem e nos representou.
Um clima de ansiedade pairava sobre esses Jogos. Quando eles foram anunciados, vivíamos o ápice da social-democracia das commodities. "Pela primeira vez na história um país sul-americano produz mais riqueza do que o Reino Unido".

A Copa mostrou que, no Brasil, qualquer coisa grande terá de deixar um gole pro santo... (E foi muito usada politicamente para desgastar a imagem do PT).
Conforme o economista Paulo Furquim, ex-conselheiro do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade):

“Estas situações com grandes projetos, formação de consórcios e vencedores que se alternam trazem evidências que mostram uma probabilidade não desprezível de existência de cartel. Evidências adicionais como superfaturamento são motivos suficientes para investigação. São certamente situações preocupantes, em que uma autoridade de concorrência deve colocar uma lupa e olhar com bastante cuidado”.
http://congressoemfoco.uol.com.br/noticias/empreiteiras-se-revezam-em-obras-da-copa-e-olimpiadas/

Grandes empresas ganhando dinheiro, modelo para o mundo. 
"A exemplo do que está planejado nos Jogos do Rio de Janeiro, a Vila dos Atletas da Olimpíada de Tóquio, daqui a quatro anos, também deverá ser transformada em condomínio de luxo, sem espaço para moradias sociais.

Segundo Masa Takaya, diretor de comunicações do Comitê Tóquio 2020, a ideia é transformar o complexo em uma "região icônica da vida urbana de Tóquio", voltada a "apartamentos de luxo, como no Rio de Janeiro". (BBC)

Nós somos maduros o suficiente para separar a hospitalidade com os estrangeiros, o que representa uma olimpíada em termos de união dos povos e tudo que é feito em seu nome. O ideal vive quando defendemos a democracia, que, afinal, é grega. 

E a abertura conseguiu lembrar o que nos motivou a concorrer pelos jogos anos atrás.

Um dos grandes desafios é preencher espaços grandes com gente pequena. Dias antes o organizador falou que os cortes levaram a uma "gambiarra" - vimos que foram as projeções, que podiam tornar tudo uma Atlanta 1996, fria e tecnológica, mas foram usadas com criatividade.

O perigo é virar o que foi a Copa - meia dúzia de pessoas visualmente insignificantes com uma coisa redonda no meio. Mas essa é a diferença entre FIFA e COI. Como bem disse uma amiga, nem sempre no Brasil são os melhores que fazem as coisas...

Toda cerimônia de abertura tem momentos mais e menos empolgantes. O pior que podia ocorrer é projetar a imagem do Brasil muito monolítica, folclorizada, de fora pra dentro (a "baiana" de Carmem Miranda até aparece no NYT nos "Essentials of Brazilian Music"), apenas floresta e carnaval, favela ou apenas Rio. (Ainda assim, houve frases desnecessárias como "Hoje o mundo é carioca"; lembrar que a Globo tem uma forma incrível de reduzir o Rio e projetar um Brasil que é apenas Rio). 

A festa iniciou com um show de fios em contraste com projeções lembrando as matas e os indígenas - deslumbrante. 

Depois, assustou um pouco o caminhar dos escravos - fraco visualmente, e correndo perigo de associar um grupo a um estereótipo, mas salvo na trave por projeções em que a terra ia sendo transformada pelo trabalho.

A festa levanta de novo com os japoneses e suas bandeiras vermelhas. Por que a ideia não foi usada para outras etnias? Os árabes ficaram meio sem cor. A vantagem foi essa: belas imagens engoliram as mais fracas. 

Gisele Bündchen como garota de Ipanema foi de uma elegância genial. Não fez falta a polícia e a proteção ao menor planejadas. 

Elza, apareceu pouco, nem com a força visual que podia ter (Canto de Ossanha foi engolido pelo "momento funk"), mas era uma homenagem muito necessária. Acho que a cena do baile na favela foi linda, mas ficamos um tempo longo com a mesma imagem. Zeca Pagodinho e Marcelo D2 fizeram um jogo interessante sobre dois ritmos musicais na mesma música, mas a projeção podia ter saído do mesmo verde e rosa...

A transição mais WTF foi de um muro de caixinhas para o 14 Bis. As caixas brancas descem de um muro de prédios em Construção que se espera chegue num ápice... Deborah Colker - enorme expectativa - foi legal nas paredes, mas ficou meio perdida na projeção esfuziante.

A luta com fogos foi deslumbrante. O maracatu quase fica perdido no meio de um enorme gramado (porque a roupa é linda e as câmeras ficaram meio longe), mas a projeção o salva. (Passando rápido por Regina Casé, que quase estraga tudo dizendo "chega de briga!")

O mesmo com a festa de palhaços coloridos ao som de Rio Maravilha. Mas como é uma maravilha, ganhou. E o público arrasou na capela.

O comentador globista conseguiu esconder o vídeo sobre o aquecimento global...

(Mas na Record, alguém consegue dizer que os membros das delegações estão "vestidos em homenagem à Iemanjá" ou "Essa aí vai pro baile"...)

A parte mais emocionante foi o poema do Drummond. Judi Dench e Fernandona.
Nem a Anitta conseguiu apagar o show (no país de Leila Pinheiro).
Nossa tocha tombou geral. É sempre um grande momento. A cara do Brasil, mesmo vindo da gringa.
Foi um grande alívio não vermos o vexame da pasteurização globista na TV. 
A mensagem do poder dominante é "esqueçam os problemas, não causem problemas". Mas somos sempre um povo de mil corações e podemos conviver com a contradição.
Por sorte nosso povo lindo não confunde as coisas: manifestações, shows de protesto, uma agenda de debates são cobrar as casas populares, liberdade de expressão e a democracia ameaçada. Sem fugir à luta.

Afonso Lima




sexta-feira, agosto 05, 2016

Olímpico

eu era uma criança feliz
Olimpíadas na TV
o mundo de amor por aí
em segredo amava você

hoje a festa é aqui em casa
entendo a ideia de grandeza nacional
amor é um lance comercial
tem tanta gente sem casa

Meu coração multicultural
sempre foi assim
trombeta de serafim
jardim de esperança memória
onde andará você?

Afonso Lima

quinta-feira, agosto 04, 2016

Narrativa real

Ele subiu no palco, agradeceu e começou seu discurso:

- Hoje será um dia histórico no Brasil.
O processo de usurpação feito por uma casta chega a desmoronar todas as instituições democráticas. 
Para entender isso temos de recorrer à história.

"4.225 pessoas, ou 0,002% da população, com 37% do PIB".
http://www.oxfam.org.br/calculadora

De que forma se construiu essa tomada da Câmara pelos fundamentalistas e setores mais conservadores? Como pode um povo todo assistir assustado a abertura de impedimento contra uma presidenta - parecendo completamente isolados do povo e focados em seus interesses? Como eles inviabilizaram o governo Dilma? Como pode uma só classe dominar Justiça, Mídia e Legislativo? 
Podemos levantar algumas questões...
Existe um conservadorismo que une classes média alta (universitária, proprietária, cujos pais já eram universitários e adquiriram bens) e a classe média baixa (pouco escolarizada, universitarizada aos poucos provavelmente em universidades caça-níqueis). 

Uns, pouco educados para a cidadania, se sentem melhores que "a ralé perigosa" e tem medo de perder com um Estado que tenha que gerir dívidas sociais - temem pela ordem na qual é barato ter um empregado, na  qual "os líderes da nação" decidem sozinhos, na qual as manchetes de uma mídia ultra-concentrada chegam para confirmar a irresponsabilidade da esquerda, os medos anticomunistas da Guerra Fria e o medo das mudanças. 
Dentro dessa classe existe mesmo um grupo cosmopolita, à favor dos direitos humanos, defensor do verde e dos indígenas, mas que, incapaz de ver o todo, quer acreditar que a "social-democracia" vendida pela centro-direita já cumpriu ou está em vias de cumprir a justiça social. 

O mais surpreendente é que exista um grupo conservador de pessoas de poder aquisitivo inferior, em geral ligado às Igrejas Evangélicas Fundamentalistas, que recentemente têm feito a ligação entre "comunismo", "satanismo" e PT. São cerca de 40 milhões de evangélicos hoje, no Brasil. Os maiores líderes, que cobram dízimo para continuar alugando canais na TV, começaram a se chocar com o PT por pautas que pouco têm a ver com distribuição de renda: combate à homofobia e direito ao aborto, por exemplo. 

É dito que essa Teologia da Prosperidade chegou ao Brasil através de missionários americanos para combater a Teologia da Libertação. Nos conselhos municipais, nas Câmaras municipais e Assembleias dos estados, até em grupos de voluntários dos hospitais esse público está assumindo postos de poder - potencialmente defendendo ideias baseadas em senso comum, sem o peso da crítica estabelecida pela racionalidade moderna, como a Escola Sem Partido (na verdade, censura ao direito do professor, para que os alunos apenas saibam o que os pais sabem). 

Lembrar - "A decisão de proibir o kit gay saiu imediatamente depois da Bancada Evangélica anunciar uma série de sanções contra o governo em protesto a proposta. Confira abaixo:
Saída do Ministro da Educação; CPI para apurar denúncias de irregularidades no MEC; Obstrução de todas votações do plenario;
Convocação do Ministro da Casa Civil, Palocci nas comissões, para dar explicações sobre o estampado na mídia;
Convocação do Ministro Fernando Haddad, na Comissão de Educação e Cultura, para explicar as cartilhas sobre homofobia;"
(Gospel Prime)

Aqui chegamos a um grupo de esquerda crítico da esquerda, que nasceu por volta de 1980, ou seja, não viveu a ditadura e chega à universidade durante o governo do PT. Suas críticas duras aos acordos da esquerda são válidas, mas esquecem, de modo geral, a quase impossível tarefa de reformar dentro de um sistema corrompido de cima a baixo. Essa geração viveu como criança as privatizações, os ajustes, a presença do FMI nos anos 1990. Isso mostra a força de um grupo pequeno, mas sintonizado com as questões do mundo contemporâneo; o perigo é esquecer todas as outras forças que constituem a democracia frágil. 

Frágil porque, ainda que tenhamos conquistado leis trabalhistas e evitado que o Brasil se tornasse uma grande plantação de café com crianças trabalhando nas fábricas (nos anos 1930), que tenhamos tido a introdução de demandas trabalhistas e do campo na arena política nos anos 1960 (por exemplo o 13º salário e aumento do salário mínimo), que tenhamos vencido a censura e a repressão e construído um projeto de diminuição da desigualdade (nos anos 1970 e 1980), ainda permanece a falta de transparência, a pouca participação popular, a desconsideração pela pluralidade e o Parlamento como oligarquia encastelada.

Nesse tempo em que o PT (oriundo da união da academia com o sindicalismo) tentou gerenciar os interesses do mercado financeiro, dos ruralistas, da bancada fundamentalista, houve "pouco índio, pouco sem-terra, pouco LGBT"... Mas acho sempre estranho que tanta gente culpe o PT por tudo, quando na verdade a população continuou votando no PMDB. 
2010 - “O presidente está sendo chantageado pelo Sarney para vir pedir votos para sua filha, ameaçando deixar a presidência do Senado e entregá-la para o senador tucano Marconi Perilo, um grande adversário de Lula”, disse Zé Reinaldo.
http://jornalpequeno.com.br/

Existe algo muito perigoso nesse sistema de presidencialismo de coalizão; o executivo não é eleito pelo parlamento, mas são 27 partidos na Câmara - muitos deles, "de aluguel", ou seja votam com quem dá mais. O governo oferece cargos, a "oposição" conservadora, um futuro sem amarras. Alguém olha as leis a serem aprovadas, procura as empresas, consegue o dinheiro, elege deputados e vira presidente da Câmara. 
Diz Noblat sobre Eduardo Cunha: 
"Se o voto fosse secreto, até mesmo os maiores desafetos de Cunha admitem que ele acabaria preservando seu mandato. Cunha tem seguidores em todos os partidos. E muitos lhe devem milionários favores."

A “Rainha da Motosserra”, Kátia Abreu, com dignidade surpreendente, não deixa pedra sobre pedra na Comissão do Impeachment no Senado, e desmascara que "o julgamento" é uma usurpação oligárquica. "O vingativo presidente da Câmara, que, no mesmo dia em que o partido da presidente negou os 3 votos para salvá-lo da comissão de ética, abriu o processo de impeachment"...

Conforme Antônio Augusto de Queiroz, diretor de Documentação do Diap:

"Em resumo, foram os custos de campanha, as coligações sem lógica ideológica e/ou programáticas, os motes moralistas dos meios de comunicação e da classe média, as cruzadas religiosas, especialmente contra a emancipação das mulheres e dos movimentos LGBT, e os programas de rádio e televisão com caráter policialesco, com ênfase na redução da maioridade penal, que levaram a uma onda de conservadorismo que resultou na eleição de um dos Congressos mais atrasados do período pós-redemocratização."
http://www.diap.org.br/

Concentração, oligarquia. Vejamos o caso da informação, aguardando regulamentação desde 1988, com entre 50 e 80 parlamentares donos de redes de comunicação (contrariando a Constituição), com empresas que passaram a justificar a ilegalidade e encobrir políticos aliados ou favoráveis a destituição de um grupo que contrariava seus interesses. 

Glenn Greenwald: "Há muito tempo, o quinto país mais populoso do mundo é dominado por um número reduzido de veículos de comunicação, dos quais a grande maioria apoiou o golpe de 1964 e os 21 anos da violenta ditadura de direita que se seguiram. 
Essas instituições ainda pertencem às mesmas cinco famílias extremamente ricas e poderosas que tiveram um papel central nesse período. Em um país de tamanha diversidade  e pluralidade, esse monopólio resultou em um mercado de comunicação que asfixia a diversidade e a pluralidade de opiniões."
https://theintercept.com/2016/08/02/welcome-to-the-intercept-brasil/

Mesmo tímidas, as ações do PT mostravam que nem tudo estava dominado: "Ministro vai iniciar debate sobre regulação da mídia em março" (Folha - 21/01/2015).

A imprensa escrita (Folhastão) - diferente da teledoutrinação do Sistema GloboBand - começou rapidamente a tentar livrar-se da alCunha de golpista e criticar excessos da gestão interina. Com certeza, ao invés do coronelismo do PMDB, com cara feia de autoritarismo, é muito mais viável um governo do PSDB, no qual trata-se de o mercado financeiro gerindo a economia, privatização sem limites e endividamento com FMI, e que tem o cuidado de apagar incêndios rebeldes (mas a repressão policial ilegal à manifestações tem mostrado um caminho claro), administra gastos no social para um mínimo sem revolta (mas os cortes na educação e cultura mostram que se pode avançar) e sabe manter a capa de legalidade, enquanto usa a máquina na Assembleia para barrar CPIs. Infelizmente, a população percebe cada vez mais que a "insustentável crise" podia ser pior. E foi.

A Justiça tem tido papel fundamental nessa processo.
O governo do PT deu poder às instâncias de controle social:
"fortalecimento, modernização e independência da Polícia Federal; autonomia do Ministério Público, com o Procurador-Geral da República sendo escolhido pela própria categoria, em votação direta, e não mais por decisão pessoal do presidente da República".
http://www.pt.org.br/governos-do-pt-promoveram-maior-numero-de-acoes-de-combate-a-corrupcao-no-brasil/

Infelizmente, sendo o sistema judiciário composto por uma classe média (uma boa profissão para se subir na vida), muitas vezes tem defendido pautas reacionárias - com honradas exceções. 
Em São Paulo, por exemplo, uma juíza foi contra as ciclovias, o Ministério Público parece sempre achar novas formas de acusar o prefeito de esquerda por "crimes" como abrir a Avenida Paulista ao passeio de pedestres nos domingos. O direito de propriedade é o centro da lei - inclusive o direito ao carro. O Estatuto das Cidades aguarda há mais de dez anos sua implementação; as pessoas sem casa ocupam áreas para forçar negociação; a Justiça manda a polícia em cima delas, como fez com os estudantes que lutavam contra os cortes na educação ocupando a Assembleia e Centro Paula Souza. 
Como afirma o jornalista Miguel do Rosário: 

"Não é mais a acusação que precisa trazer elementos comprobatórios para manter um cidadão brasileiro confinado entre quatro paredes. Agora é o cidadão que precisa provar ao juiz que é inocente. Pior, precisa provar ao juiz que não cometerá crimes no futuro! Forçar um cidadão, através da mais insidiosa tortura física, mental e familiar (!), a provar ao juiz que não mais pecará! Só a delação salva!" 
http://www.tijolaco.com.br/blog/author/miguel/

A defesa do ex-presidente Lula procurou o advogado Geoffrey Robertson, que encaminhou recurso ao Comitê de Direitos Humanos da ONU contra abuso de poder do juiz Sérgio Moro.

"Lula trouxe seu caso para a ONU porque não é possível haver justiça no Brasil dentro de um sistema como esse. Telefones grampeados, como de sua família e advogados, e áudios vazados para deleite de uma mídia politicamente hostil. O mesmo juiz que invade sua privacidade pode prendê-lo a qualquer momento e daí automaticamente se torna quem irá julgá-lo, decidindo se ele é culpado ou inocente sem um júri. Nenhum juiz na Inglaterra ou na Europa poderia agir dessa forma, ao mesmo tempo como promotor e juiz. Esta é uma grave falha do sistema penal brasileiro."
http://www.brasil247.com/

Para Aldo Fornazieri, Professor da Escola de Sociologia e Política de São Paulo: 

"Os juízes do STF estão sob graves suspeitas, pois as gravações dos conspiradores deixam claro que o STF não agiu de forma isenta como guardião da Constituição. Tanto o STF quanto a PGR, no mínimo, omitiram-se e prevaricaram na posse de informações estarrecedoras que detinham."
http://jornalggn.com.br/

Um dos vazamentos foi o de Renan falando que Dilma recebeu o presidente do Supremo Tribunal Federal para discutir a defesa da Constituição, e que ele "só queria saber de aumento"; de fato, ganhou 41% depois do governo interino tomar pose. 

Raúl Zaffaroni, o maior penalista da América Latina: "Não acho que a Mãos Limpas tenha a ver com a Lava Jato. A Mãos Limpas não foi uma tentativa de golpe de Estado."
http://cartamaior.com.br/

Diz o jornalista Luis Nassif:
"Jogo jurídico – depois de inúmeras pressões contra sua parcialidade, o Procurador Geral da República (PGR) Rodrigo Janot esboçou alguma tentativa de isonomia, abrindo ações contra Aécio Neves (do PSDB). Cumpridas as formalidades, nada mais se sabe das investigações. No momento, ele está preocupado com os presentes que Lula e Dilma receberam de dignitários estrangeiros. A delação da Odebrecht exigirá outras estratégias evasivas."
http://jornalggn.com.br/

A luta de classes venceu. O valor de um governo está na esperança que dá ao povo. A concentração de renda sempre ameaça a democracia, mas aqui a esfera pública foi dominada por discursos obscurantistas. Parece que uma classe branca e rica usou a desculpa da corrupção para burlar a eleição. 
Como disse Charles Chaplin, em 1940: "Soldados, em nome da democracia, unamo-nos!"
Obrigado.


terça-feira, agosto 02, 2016

Manufatura

A fábrica tinha máquinas pequenas adequadas às crianças.
O dono passava por elas com dificuldade, levando a comissão da prefeitura.
- Essas crianças poderiam estar na rua mendigando. Sujeitas à crimes.
O ar era abafado e pouca luz entrava pelas janelas sujas.
- Ouvimos falar em casos de meninas feridas ao colocar o fio na lançadeira - disse a professora que acompanhava a comitiva.
- Sabe, nossa proposta é limitar a idade de trabalho para acima de onze anos. A verdade é que, mesmo em trabalhos artesanais, algumas crianças são tão subnutridas que dormem ou desmaiam.
- A educação pública ainda não chegou para a maioria das crianças pobres - senhora Lourdes Maria falou ajustando os óculos. Mas o senhor tem de convir que uma criança de sete anos não poderia trabalhar doze horas por dia.
- A senhora se esquece que os pais deles são miseráveis. Não é culpa nossa que exista essa massa de famintos.
- Os pais ganham muito pouco - a professora disse. E o povo chama esses lugares de "manufatura de tuberculose".
- A senhora imagina os custos de uma fábrica de vidro? De uma fábrica de chapéu? No Rio as fábricas fecham porque não conseguiram capital suficiente. Vamos ser pra sempre um país de roceiros?
- Mas o senhor com certeza prefere mulheres e crianças, que custam menos - ela disse.
Um menino carregava um pesado saco de carretéis. Levava uma marca de queimadura no rosto.
- Como foi isso meu querido - perguntou Loudes Maria.
- Ele trabalhava com fósforos, colocava na caixinha. Vamos, senhores, vou mostrar o projeto da obra para aumentar o tamanho das janelas.
E a comissão seguiu para o escritório no andar de cima.

Afonso Lima

segunda-feira, agosto 01, 2016

Luz câmera amor

Suponho que eu nunca serei o marido ideal
eu tenho segredos
derrubo coisas pela casa
esqueço a luz acesa
abro os braços no colchão
não tenho paciência para coisas de classe média
classe média adora bolos de aniversário
classe média quer respeito ao professor
suponho que eu nunca serei o marido
que você sonhou no seu facebook
entre compras andando à cavalo
no dia em que ganhou aquela medalha
no show abraço de bêbados
o vaso de flor na lareira e diploma na parede
e nada no mundo precisa de transformação
o homem de barba abrindo sacos de lixo
comendo um sanduíche como um bicho faz parte do jogo
suponho que eu seja dark profundo idiota e espontâneo
suponho que eu precise mais que milk shake
classe média acha que já sabe o suficiente
classe média tira foto na pirâmide e corre no parque
tem roupa de casamento e batizado
eu adoro coisa de gato ao sol e o acaso
classe média adora praia e malhação
suponho que eu goste de labirintos e do seu lado infantil
sofá de florzinha e selfie na piscina me irritam
eu não vou ver novela com você
suponho que eu nunca serei o marido ideal

Afonso Lima

K

Cante Kant
andando em círculos
solitário
o tempo é nosso espaço

no centro de tudo
uma busca
mentir em conjunto
não sabe

cante cante
concreto poetismo
o velho jardim
o relógio preciso
nosso espaço não cabe

Afonso Lima