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domingo, julho 30, 2017

rastros

Aqui, em pedaços, textos, fotos, livros.

Quero a linha disso tudo. Papel amarelo na parede.

Algo foi esquecido, caiu dentro do lago profundo, quero achar.

Estão numa faixa na beira da estrada.

O jornal anuncia a missão pelo norte.

Foram colocados nos aviões, morreram de pneumonia.

Que posso com minhas palavras, de outros, fazer senão o palavrar, com agulha de letras, passado e um possível mundo amoroso?

Recorto as fotos e escrevo entre as linhas. Autópsia de estruturas vivas.

"Polícia reprime baixo-espiritismo".

O governador pede ao ouvidor-geral o fim das "danças dos negros" nas festas de Nossa Senhora dos Prazeres.

Madeireiros entram na floresta. Uma líder esfaqueada.

Eu tento fazer disso um enredo, meu outro eu resiste, ele quer a brutalidade da vida e tudo que nela não se ordena. Palavras silenciadas, retratos sem legenda, a dança da noite que abre o mundo secreto.

Ruralistas apoiam novo governo.

As árvores conversam entre si. É na mata que a gente ouve os antepassados.

Agora, esses que evoco como meus me contam suas histórias, ninguém chorou por eles e os feridos ainda gemem. As línguas com que me falam pedem um túmulo na minha voz cansada.

Solitários, o frio da cidade. Suicídio e alcoolismo.

Justiça impede índios de receberem sua terra.

Dentro do lago profundo eu vejo os ossos e troco com eles palavras dolorosas.

As mortes por desnutrição das crianças, a volta da epidemia de malária, as muitas vítimas fatais de serpentes no Rio Negro, as crianças enterradas.

Meu ouvir alcança a era em que a Ásia e a América não tinham fronteira, os homens e os animais ainda não se distinguiam, todos na mesma alma humana.

Entram nas fazendas e montam acampamentos. Em tumulto, expulsos pelos fazendeiros.

Agora, que vermelho é esse sobre teu corpo?

Aqui encontro, nas paredes, os textos e as imagens em movimento.

Missão científica do departamento de cultura.

Veja o que ocorreu com essa cidade em dez anos? Quando todos estiverem em suas casas ouvindo rádio, o que vai sobrar dos folguedos?

Filmes das danças. Objetos. Canções, fotos, cadernos de desenhos.

Cansaram de esperar, buscam as retomadas, a ocupação de uma área que já foi de seus ancestrais.

O radialista indígena reclama sobre a violência da polícia no protesto.

Devo calar, devo apenas ouvir, meu gesto aponta o que ficou perdido no caminho.

Sobre a mesa, traço linhas e traduzo versos, colo pedaços em preto e branco.

Entre as pedras brancas do dia, vozes que me guiam para que meu barco chegue a seu destino, para que eu não deixe minha ambição afundar meus amigos, naufrágio da violência em terras desertas.

As crianças brincam na aldeia e tiram fotos com seu celular. As crianças me ensinam palavras.

Investigar rastros, colocar a pele de outro, eu conto minhas histórias e não as deixo perdidas, ganho roupa e comida, viajante experiente. 

Não aceitam uma ficção ordenada, com bocas que falam e aventuras, esses duros tempos feitos de eterno presente.

Novo prefeito afasta o escritor do cargo de diretor do Departamento de Cultura e ordena fim da missão.

Moradores reclamaram. Dizem que mataram galinhas. Caminhando pelo mato, obrigados, morrem de fome.

Não quero criar nada, no máximo eu recolho pregos e destroços da explosão, da ruína deixada por algum poder cruel.

Alguma estrada passará por lá e eles morrerão.

Que podem minhas palavras fazer? Eu posso honrar esse nós, deixar que seja o que é, com minha agulha de letras um pouco de ilusão viva e distância. Agora, um túmulo na palavra cansada.

O segurança proíbe oferenda no lago terceirizado.

Polícia fecha xangôs. "Exploração da boa fé e feitiçaria".

Eu saio do meu eu e pego o barco que me leva até a ilha dos homens sábios.

Essa não é apenas uma cidade em que se pensa que os Direitos Humanos se resumem a defender seu carro e sua casa.

Atravesso fronteiras, missão científica, minha voz na noite onde falam os esquecidos.


Afonso Junior Ferreira de Lima


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