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domingo, dezembro 17, 2017

Crônica do crepúsculo da nação

Aos poucos percebemos que o Brasil nunca viveu uma democracia... Democracia prevê que as pessoas tenham educação e informação para escolher com independência. O contato do "cidadão" com o poder é a TV.

A vitória de Doria em São Paulo deixou claro que uma campanha publicitária (e dinheiro) pode superar uma boa gestão (o antecessor). O Estado sendo destruído por dentro por milionários que não pensam em ampliar a dignidade através de investimentos... No Executivo, o que o povo pensa não faz diferença; o abismo é tão grande que "a questão social é caso de polícia", como na República Velha. 

Um amigo, que votou no Doria comenta: "Só falavam em ciclovia", ou seja, a mídia deu um foco tão desproporcional em um debate (o conservadorismo na aliança de uma indústria e um modo de ser que vê status no carro) que os investimentos foram esquecidos. E não se consegue fazer essa crítica. 

A periferia não recebeu nunca a tradição cultural, instrumentos de pensar, mas cultura pop norte-americana. Não que não haja movimentos culturais e grupos que tentam lutar contra a maré, mas o trabalho intenso, a falta de informação, heranças conservadoras e o ódio ao rebelde bem construídos no passado atrapalham qualquer efeito em larga escala. Sem informação, o modelo se torna uma celebridade que simbolize poder, liberdade e conquistas. Mas a vida real continua sendo trabalhar no shoppping, tomar ônibus insalubre e conviver com a violência. 

No Congresso, deputados falam como se estivessem em 1970. Falar sobre gênero é "ideologia". Matar criminosos é bom. Homossexualidade é perversão. Assim como para a maioria da população, as lutas das minorias são comunismo, invenção, bagunça, imoralidade. Dentro da bolha com ensino universitário, artistas e classe média leitora, são assuntos superados. Mas o fundamentalismo evangélico tem voz e a caneta na mão no legislativo. 

A massa acha mesmo que o sangue vai resolver o problema da violência.
Mas me surpreende mais a confusão de quem têm acesso à educação. Para uma certa classe a desigualdade não existe. Depois de ataques a tudo que eu postava num grupo de professores, descubro que um estudante de Direito rico vai votar na extrema-direita. Existe essa máquina da oligarquia espalhando bem a revolta contra a igualdade. Assim, se muda o foco e se ataca o Lula. 

Outro amigo, muito leitor e que tem acompanhado os jornais a vida toda, fala em defesa da reforma da previdência. Ele não teve acesso a nenhum dado crítico. 

Numa rede social, uma moça que vive fora do país diz: "Tudo é culpa da Dilma". Um atendente numa loja diz estar revoltado com a "reforma" trabalhista. "Mas não vou votar no Lula". Depois de um ano de ataque aos direitos fundamentais, isso é uma prova de como o mito televisivo entrou pele adentro e se tornou bio-poder. Nada pode mudar uma fantasia. 

Pela falta de expansão do conhecimento sobre direitos humanos, nosso povo tem a cabeça dos anos 1970. E o fundamentalismo evangélico reforçou esses preconceitos, transformando-se em máquina econômica. Essa disputa chega a cada conselho de hospital e parque e ao tratamento de dependentes químicos, para o que os missionários têm uma verba do Ministério da Saúde. 

A sociedade se movimentou depois das cotas e da expansão do ensino universitário (as universidades sendo gravemente atingidas por cortes e pelo sistema policial). Mas apenas 14% dos brasileiros teve acesso à universidade, assim como 60% nunca foi ao teatro. Nossa democracia controlada pelos milionários não pode dar muitas informações, com medo de ter de dividir o poder, mas sabe que o fascismo surgiu da miséria e da revolta baseada em preconceitos. Assim, vivemos "a democracia" em que abrimos mão do poder político, da decisão, enquanto ficamos sabendo do que será feito nos jornais e compramos produtos para cabelo. 

Num restaurante, assisto a programação da TV. Como fazer peru de Natal. Como cortar sua franja. A mesma TV que defende as mudanças mais absurdas do governo. Uma fábula que reescreve o mundo como paraíso do consumo no país mais desigual do mundo. Anos de falta de informação, da visão dos empresários passada diariamente, somados às formas digitais de manipulação, criaram uma massa amorfa pré-disposta aos slogans dos milionários e fascistas. 

Aliado a isso, vemos uma parceria entre nosso sistema jurídico e o de outros países, sem passar pelo executivo. A maioria dos juízes ganha acima do que permite a lei (cerca de 33 mil Reais). Num programa de TV vejo um juiz dizer que "temos de dizer não às modas, como o politicamente correto". Pensei que fosse necessário, num país onde todo homem livre estabelecido era traficante de escravos há 100 anos.

Nenhuma novidade nessa crônica do crepúsculo da nação, apenas a percepção mais aguda de que deixamos o homem medíocre tomar o poder e a população não tem meios de se defender, pois não sabe quem é e o que a atinge. Existe uma revolta, um campo elétrico vibrando, principalmente entre os estudantes ainda meio chocados por verem desaparecer qualquer perspectiva, assim como entre trabalhadores mais politizados. Ao mesmo tempo, a manipulação da votação e o bombardeio de propaganda pelas telas parecem ser mais poderosos.

A história não é estática, entretanto. A contradição, quando toca a pele, gera reflexão - Doria já tem 55% de rejeição na população negra em um ano. Agora, provavelmente caberá à repressão policial domar a crítica. Mas essa é a realidade. Nossa liberdade e representatividade podem muito bem evaporar entre os dedos do poder banqueiro e da massa auto-destrutiva. 

Afonso Junior Ferreira de Lima


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